|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Volta do 'Rei da Vela' brinda insanidade e depravação
Peça de Oswald de Andrade, cuja
remontagem está prevista para
estrear em setembro, marca
reencontro do diretor Zé Celso
Martinez Corrêa com Renato Borghi
MARIO VITOR SANTOS
da Reportagem Local
A insanidade e a depravação estão de volta. Ícone da antropofagia
tropicalista, a peça "O Rei da Vela", de Oswald de Andrade, será
remontada. A
direção é de
novo de José
Celso Martinez
Corrêa, 31 anos
depois da primeira encenação, que, mesmo perseguida
pela censura,
correu o país
de 1967 a 1971.
Os produtores apontam a
estréia para setembro, o que
marcará o
reencontro de
Zé Celso e Renato Borghi, a
dupla que é
uma espécie de
Lennon e
McCartney
pós-Sargent
Pepper's do
teatro brasileiro nos anos 60.
Rompidos
em 73, quando
o grupo, falido
e cheio de dívidas, radicalizava sua viagem
experimentalista e questionava a fundo o papel do
ator, eles ficaram 13 anos sem se
falar, seguidos por outros tantos
anos de distanciamento e estradas
artísticas diversas.
A cenografia e figurinos serão de
Hélio Eichbauer, criador da primeira versão. Parte dos cenários
da peça foi recuperada e usada por
Caetano Veloso na turnê do disco
"Estrangeiro".
A volta deste "Rei da Vela" é
uma iniciativa da Dueto Produções, das irmãs Monique e Sylvia
Gardenberg, que planejam apresentações em curtas temporadas
de duas semanas em grandes casas
como o Palace, em São Paulo, Canecão (Rio) e o teatro Castro Alves
(Salvador). Já em março, estréia a
versão cinematográfica da peça,
filmada a partir de 1971, com direção de Zé Celso e Noílton Nunes
(leia texto nesta página).
Como na primeira versão, Borghi fará o personagem Abelardo 1º,
agiota e industrial, dono de uma
fábrica de velas. Farsante e decadente, ele atribui sua fortuna aos
juros escorchantes que cobra nos
empréstimos: "Sou um personagem do meu tempo, vulgar, mas
lógico", diz.
Para Zé Celso, a nova versão do
"Rei da Vela" está para o recente
crash das bolsas como o texto original de Oswald estava para o crash
da bolsa de Nova York em 1929.
Na peça, Abelardo 1º contracena
com Abelardo 2º, seu empregado e
substituto. Zé Celso vê o Brasil de
hoje sob o domínio deste Abelardo
2º, "um ex-socialista que faz um
pacto com a oligarquia dominante, se casa com Heloísa de Lesbos e
se alia a Mr. Jones, um empresário
americano, para modernizar o
pacto contra a jaula".
Pode parecer um panfleto, e é.
Oswald, porém, na época ligado ao
Partido Comunista, usa o panfleto
não para catequizar, mas como
elemento dramático. Ele encena o
panfleto.
"O Rei da Vela" é uma farsa, feita com espírito de invenção, alegria e poesia. Abelardo 1º impera
sobre uma galeria de personagens
arquetípicos, como o barão do café
coronel Belarmino, com cuja filha,
Heloísa de Lesbos, pretende casar.
Heloísa tem três irmãos. Perdigoto, um defensor do latifúndio. A
sapatão Joana e também Totó,
uma espécie de travesti. Há também, dentre outros, o intelectual
Pinote, sempre pronto a prestar
serviços a quem tenha poder.
Elenco
"São tipos irônicos, emblemáticos e grotescos. Na versão de 67, a
mera presença física numa peça de
gente como Etty Fraser, Brandão
Filho e Dirce Migliaccio resgatava
aspectos muito interessantes da
cultura brasileira", diz a produtora Monique Gardenberg.
"Era muito interessante, por
exemplo, ter o Grande Otelo como
o Cliente falido que recorre ao
agiota para renegociar sua dívida", afirma ela, referindo-se a
uma leitura filmada feita em 1986.
"O Zé Celso tem agora o desafio
de descobrir quem, hoje, poderá
representar essa diversidade." O
diretor diz que ainda não definiu
os outros nomes do elenco.
Para além da curiosidade que o
espetáculo desperta, há ao menos
um temor justificado nessa montagem: o de que ela se restrinja a
uma manifestação museológica
datada e esvaziada, ou seja, de que
a carga subversiva do texto de Oswald apareça hoje como que relativamente rotineira.
Como na primeira vez, Zé Celso
diz ter sido convencido por Renato
Borghi a remontar a peça: "Fizemos uma leitura, eu não achava
que deveria ser montada, mas, de
novo, o Renato estava certo. Percebi que a peça está absolutamente
viva dentro dele".
Segundo Zé Celso, a peça é ideal
para a realização do projeto oswaldiano de criação de um teatro dos
estádios, das multidões, em que o
Carnaval ganhe o status de religião, base da anarquia fortemente
erotizada que caracteriza as montagens de sua companhia.
Inversão
Não foi sempre assim. Antes da
montagem do "Rei da Vela" em
67, o Oficina já era um grupo inquieto e inovador, mas preso por
diversas limitações. Foi o encontro
com Oswald -"o maior dramaturgo do século", para Zé Celso-
que inverteu o teatro do grupo.
O Oficina foi levado a abandonar
a atitude de imitação da realidade,
para mergulhar na invenção, numa apropriação antropofágica de
tudo que estava latente nos mais
diversos níveis da cultura brasileira, como o teatro de revista, a
chanchada, o Carnaval, a umbanda, a potência que vem das ruas.
Em 67, a peça inaugurou o novo
Oficina, que havia se incendiado
no ano anterior. O projeto arquitetônico de Flávio Império para o
teatro, a cenografia e o figurino de
Eichbauer para a peça possibilitaram também várias rupturas, segundo Zé Celso, das quais uma das
mais importantes foi a explosão do
palco e do teatro italianos, uma alteração radical da relação, ou da
separação, palco-platéia.
"Pela primeira vez, uma atriz,
como no teatro de revista, descia
para a platéia e fazia um improviso", diz Zé. O personagem João
dos Divãs, o sapatão interpretado
então por Liana Duval, sentava-se
no colo das mulheres, esfregava-se, cantava-as.
O resultado dessa e de outras iniciativas, que lembrava a "estética" da Rádio Nacional, a princípio foi considerado de mau gosto,
panfletário, agressivo e imoral.
"O Oswald liberou tudo, liberou
o jogo do teatro, do brechtianismo, do grotovskismo. Ao mesmo
tempo, permitiu a alegria, liberou
o lado trágico e operístico. Trouxe
à tona tudo o que era considerado
mau gosto. Foi um escândalo, uma
revolução na época das revoluções", lembra Zé Celso.
Personagens como os quatrocentões paulistas, até então tratados no palco com seriedade e cerimônia, eram apresentados na base
do escracho e da irreverência.
O pansexualismo era a marca,
numa peça em que os personagens
se saudavam trocando continências, enquanto empalmavam, civicamente, seus paus e xoxotas.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|