São Paulo, sexta, 30 de janeiro de 1998

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Volta do 'Rei da Vela' brinda insanidade e depravação

Peça de Oswald de Andrade, cuja remontagem está prevista para estrear em setembro, marca reencontro do diretor Zé Celso Martinez Corrêa com Renato Borghi

MARIO VITOR SANTOS
da Reportagem Local

A insanidade e a depravação estão de volta. Ícone da antropofagia tropicalista, a peça "O Rei da Vela", de Oswald de Andrade, será remontada. A direção é de novo de José Celso Martinez Corrêa, 31 anos depois da primeira encenação, que, mesmo perseguida pela censura, correu o país de 1967 a 1971.
Os produtores apontam a estréia para setembro, o que marcará o reencontro de Zé Celso e Renato Borghi, a dupla que é uma espécie de Lennon e McCartney pós-Sargent Pepper's do teatro brasileiro nos anos 60.
Rompidos em 73, quando o grupo, falido e cheio de dívidas, radicalizava sua viagem experimentalista e questionava a fundo o papel do ator, eles ficaram 13 anos sem se falar, seguidos por outros tantos anos de distanciamento e estradas artísticas diversas.
A cenografia e figurinos serão de Hélio Eichbauer, criador da primeira versão. Parte dos cenários da peça foi recuperada e usada por Caetano Veloso na turnê do disco "Estrangeiro".
A volta deste "Rei da Vela" é uma iniciativa da Dueto Produções, das irmãs Monique e Sylvia Gardenberg, que planejam apresentações em curtas temporadas de duas semanas em grandes casas como o Palace, em São Paulo, Canecão (Rio) e o teatro Castro Alves (Salvador). Já em março, estréia a versão cinematográfica da peça, filmada a partir de 1971, com direção de Zé Celso e Noílton Nunes (leia texto nesta página).
Como na primeira versão, Borghi fará o personagem Abelardo 1º, agiota e industrial, dono de uma fábrica de velas. Farsante e decadente, ele atribui sua fortuna aos juros escorchantes que cobra nos empréstimos: "Sou um personagem do meu tempo, vulgar, mas lógico", diz.
Para Zé Celso, a nova versão do "Rei da Vela" está para o recente crash das bolsas como o texto original de Oswald estava para o crash da bolsa de Nova York em 1929.
Na peça, Abelardo 1º contracena com Abelardo 2º, seu empregado e substituto. Zé Celso vê o Brasil de hoje sob o domínio deste Abelardo 2º, "um ex-socialista que faz um pacto com a oligarquia dominante, se casa com Heloísa de Lesbos e se alia a Mr. Jones, um empresário americano, para modernizar o pacto contra a jaula".
Pode parecer um panfleto, e é. Oswald, porém, na época ligado ao Partido Comunista, usa o panfleto não para catequizar, mas como elemento dramático. Ele encena o panfleto.
"O Rei da Vela" é uma farsa, feita com espírito de invenção, alegria e poesia. Abelardo 1º impera sobre uma galeria de personagens arquetípicos, como o barão do café coronel Belarmino, com cuja filha, Heloísa de Lesbos, pretende casar.
Heloísa tem três irmãos. Perdigoto, um defensor do latifúndio. A sapatão Joana e também Totó, uma espécie de travesti. Há também, dentre outros, o intelectual Pinote, sempre pronto a prestar serviços a quem tenha poder.
Elenco
"São tipos irônicos, emblemáticos e grotescos. Na versão de 67, a mera presença física numa peça de gente como Etty Fraser, Brandão Filho e Dirce Migliaccio resgatava aspectos muito interessantes da cultura brasileira", diz a produtora Monique Gardenberg.
"Era muito interessante, por exemplo, ter o Grande Otelo como o Cliente falido que recorre ao agiota para renegociar sua dívida", afirma ela, referindo-se a uma leitura filmada feita em 1986. "O Zé Celso tem agora o desafio de descobrir quem, hoje, poderá representar essa diversidade." O diretor diz que ainda não definiu os outros nomes do elenco.
Para além da curiosidade que o espetáculo desperta, há ao menos um temor justificado nessa montagem: o de que ela se restrinja a uma manifestação museológica datada e esvaziada, ou seja, de que a carga subversiva do texto de Oswald apareça hoje como que relativamente rotineira.
Como na primeira vez, Zé Celso diz ter sido convencido por Renato Borghi a remontar a peça: "Fizemos uma leitura, eu não achava que deveria ser montada, mas, de novo, o Renato estava certo. Percebi que a peça está absolutamente viva dentro dele".
Segundo Zé Celso, a peça é ideal para a realização do projeto oswaldiano de criação de um teatro dos estádios, das multidões, em que o Carnaval ganhe o status de religião, base da anarquia fortemente erotizada que caracteriza as montagens de sua companhia.
Inversão
Não foi sempre assim. Antes da montagem do "Rei da Vela" em 67, o Oficina já era um grupo inquieto e inovador, mas preso por diversas limitações. Foi o encontro com Oswald -"o maior dramaturgo do século", para Zé Celso- que inverteu o teatro do grupo.
O Oficina foi levado a abandonar a atitude de imitação da realidade, para mergulhar na invenção, numa apropriação antropofágica de tudo que estava latente nos mais diversos níveis da cultura brasileira, como o teatro de revista, a chanchada, o Carnaval, a umbanda, a potência que vem das ruas.
Em 67, a peça inaugurou o novo Oficina, que havia se incendiado no ano anterior. O projeto arquitetônico de Flávio Império para o teatro, a cenografia e o figurino de Eichbauer para a peça possibilitaram também várias rupturas, segundo Zé Celso, das quais uma das mais importantes foi a explosão do palco e do teatro italianos, uma alteração radical da relação, ou da separação, palco-platéia.
"Pela primeira vez, uma atriz, como no teatro de revista, descia para a platéia e fazia um improviso", diz Zé. O personagem João dos Divãs, o sapatão interpretado então por Liana Duval, sentava-se no colo das mulheres, esfregava-se, cantava-as.
O resultado dessa e de outras iniciativas, que lembrava a "estética" da Rádio Nacional, a princípio foi considerado de mau gosto, panfletário, agressivo e imoral.
"O Oswald liberou tudo, liberou o jogo do teatro, do brechtianismo, do grotovskismo. Ao mesmo tempo, permitiu a alegria, liberou o lado trágico e operístico. Trouxe à tona tudo o que era considerado mau gosto. Foi um escândalo, uma revolução na época das revoluções", lembra Zé Celso.
Personagens como os quatrocentões paulistas, até então tratados no palco com seriedade e cerimônia, eram apresentados na base do escracho e da irreverência.
O pansexualismo era a marca, numa peça em que os personagens se saudavam trocando continências, enquanto empalmavam, civicamente, seus paus e xoxotas.



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