São Paulo, quarta-feira, 30 de março de 2005

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MARCELO COELHO

Sozinhos na Ilha da Páscoa

Países como o Iraque, o Irã ou Coréia do Norte já causam bastante dor de cabeça na chamada "comunidade internacional". Mas, pelo que andei lendo, um dos lugares mais preocupantes do planeta está situado muito longe dessas áreas de guerra e turbulência. Trata-se da Ilha da Páscoa.
Como assim? Não existe nada lá. A não ser aquelas estátuas de pedra... Justamente. A história por trás dessas estátuas é apavorante, e vai sendo reconstruída aos poucos pelos cientistas. Faço um resumo, que não garanto exato, do que aconteceu. Baseio-me nos artigos de Ronald Wright ("Times Literary Supplement", 19/11/2004), Jared Diamond ("New York Review of Books", 25/ 3/2004), e Clifford Geertz ("New York Review of Books", 24/ 3/ 2005).
A Ilha da Páscoa começou a ser ocupada por índios de origem polinésia por volta do ano 900 d.C., e chegou a ter 15 mil habitantes. A ilha estava dividida em 11 territórios, cada um deles pertencendo a um chefe de clã. O material para esculpir as estátuas provinha da cratera de um vulcão, localizado no centro da ilha.
Os clãs começaram a competir entre si, construindo estátuas cada vez maiores para seus ancestrais. O problema tecnológico era como transportar as esculturas, e seus pedestais gigantescos, da "oficina" localizada perto do vulcão até a costa, onde eram cultuadas.
Estudiosos como John Flenley (co-autor de "The Enigmas of Easter Island", Oxford University Press) descobriram que o jeito de transportar essas estátuas era puxando-as com cordas ao longo de "trilhos" feitos de troncos de palmeira. As árvores utilizadas nesses trilhos eram altíssimas, e serviam também para construir jangadas de pesca.
A febre das estátuas foi se tornando mais e mais intensa. Eis o que escreve o historiador Ronald Wright, autor de "A Short History of Progress": "Cada geração daquelas imagens se tornava maior do que a anterior, exigindo mais madeira, mais cordas e mão-de-obra para transportá-la. As árvores foram derrubadas num ritmo maior do que a sua capacidade de reposição, problema que se tornou pior devido aos ratos (trazidos da Polinésia pelos primeiros colonizadores), que comiam as sementes e os brotos das palmeiras."
Quando viajantes holandeses chegaram à ilha, no domingo da Páscoa de 1722, cerca de mil habitantes subnutridos vagavam por um território coberto apenas de arbustos. Desde que a última grande palmeira fora derrubada, três séculos antes, várias catástrofes tinham acontecido.
Durante um tempo, ainda havia jangadas para pescar. Mas elas foram se estragando, e não se tinha mais madeira para construí-las. A análise dos restos de alimento acumulados pelas diversas gerações mostra os avanços da fome a partir de 1400: peixes cada vez menores, encontrados a pouca distância da costa, foram sendo substituídos por moluscos, estes também diminuindo de tamanho, enquanto cresceu o consumo de ratos -e, finalmente, de carne humana.
A população inteira estava presa numa armadilha; a Ilha da Páscoa, como se sabe, fica no meio do Oceano Pacífico, a milhares de quilômetros de qualquer outro lugar habitado; e não havia como voltar até a Polinésia dos ancestrais.
Estes passaram a ser responsabilizados, ao que tudo indica, pela tragédia. Deu-se um surto de derrubada furiosa das estátuas, no contexto de uma guerra civil que durou 70 anos. As ferramentas de escultura foram readaptadas, na última descoberta tecnológica da população, para o uso como punhais e lanças.
Especula-se que, antes disso, ocorrera um movimento ultra-religioso: se os períodos de seca eram crescentes, se a fome se tornava mais intensa, então os ancestrais não estavam contentes com as homenagens: queriam mais esculturas. No esforço de agradar a suas exigências, a população sacrificou tudo o que restava. Só depois de praticamente destruído o sistema ecológico da ilha, sem que nenhum apelo humano tivesse chegado aos ouvidos dos ancestrais, o desespero e o ressentimento iconoclasta vieram à tona.
No auge daquela civilização, havia uma escultura para cada dez habitantes. No final do século 18, restava só um habitante por estátua.
Nosso planeta inteiro como uma Ilha da Páscoa, de onde não temos tecnologia para fugir: será que essa história de terror ecológico pode se repetir em larga escala? As fotos que apareceram neste ano, evidenciando o aquecimento global, não são nada tranquilizadoras: as neves do Kilimanjaro derretidas, como água escoando num ralo gigantesco; geleiras que retrocedem, dando espaço à terra seca... Não sei quando começará a derrubada das estátuas. Se é que já não estamos vivendo essa fase, com o terrorismo global.
Com certa distância cética, o antropólogo Clifford Geertz qualifica esses relatos como "exercícios" no sentido de "produzir determinado estado de espírito social" ("engineering a social mood"). Temo que seja mais do que "estados de espírito" o que estamos discutindo aqui.
Bendito ceticismo, em todo caso: afinal, se uma coisa nos distingue da população da Ilha da Páscoa é que, apesar das agressões constantes ao ambiente, os objetivos e obsessões dos terráqueos em seu conjunto são bem mais variados e contraditórios que os daqueles escultores, e ninguém espera que florestas renasçam por meio de preces e autos-da-fé.
Não é conclusão das mais otimistas. Que passe, por fim, o melancólico trocadilho: como mensagem de Páscoa, que de todo modo já vem com atraso, é o melhor que este coelho tinha a oferecer.


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