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MARCELO COELHO
Sozinhos na Ilha da Páscoa
Países como o Iraque, o Irã
ou Coréia do Norte já causam bastante dor de cabeça na
chamada "comunidade internacional". Mas, pelo que andei lendo, um dos lugares mais preocupantes do planeta está situado
muito longe dessas áreas de guerra e turbulência. Trata-se da Ilha
da Páscoa.
Como assim? Não existe nada
lá. A não ser aquelas estátuas de
pedra... Justamente. A história
por trás dessas estátuas é apavorante, e vai sendo reconstruída
aos poucos pelos cientistas. Faço
um resumo, que não garanto exato, do que aconteceu. Baseio-me
nos artigos de Ronald Wright
("Times Literary Supplement",
19/11/2004), Jared Diamond
("New York Review of Books", 25/
3/2004), e Clifford Geertz ("New
York Review of Books", 24/ 3/
2005).
A Ilha da Páscoa começou a ser
ocupada por índios de origem polinésia por volta do ano 900 d.C., e
chegou a ter 15 mil habitantes. A
ilha estava dividida em 11 territórios, cada um deles pertencendo a
um chefe de clã. O material para
esculpir as estátuas provinha da
cratera de um vulcão, localizado
no centro da ilha.
Os clãs começaram a competir
entre si, construindo estátuas cada vez maiores para seus ancestrais. O problema tecnológico era
como transportar as esculturas, e
seus pedestais gigantescos, da
"oficina" localizada perto do vulcão até a costa, onde eram cultuadas.
Estudiosos como John Flenley
(co-autor de "The Enigmas of
Easter Island", Oxford University
Press) descobriram que o jeito de
transportar essas estátuas era puxando-as com cordas ao longo de
"trilhos" feitos de troncos de palmeira. As árvores utilizadas nesses trilhos eram altíssimas, e serviam também para construir jangadas de pesca.
A febre das estátuas foi se tornando mais e mais intensa. Eis o
que escreve o historiador Ronald
Wright, autor de "A Short History
of Progress": "Cada geração daquelas imagens se tornava maior
do que a anterior, exigindo mais
madeira, mais cordas e mão-de-obra para transportá-la. As árvores foram derrubadas num ritmo
maior do que a sua capacidade de
reposição, problema que se tornou pior devido aos ratos (trazidos da Polinésia pelos primeiros
colonizadores), que comiam as
sementes e os brotos das palmeiras."
Quando viajantes holandeses
chegaram à ilha, no domingo da
Páscoa de 1722, cerca de mil habitantes subnutridos vagavam por
um território coberto apenas de
arbustos. Desde que a última
grande palmeira fora derrubada,
três séculos antes, várias catástrofes tinham acontecido.
Durante um tempo, ainda havia jangadas para pescar. Mas
elas foram se estragando, e não se
tinha mais madeira para construí-las. A análise dos restos de
alimento acumulados pelas diversas gerações mostra os avanços da fome a partir de 1400: peixes cada vez menores, encontrados a pouca distância da costa, foram sendo substituídos por moluscos, estes também diminuindo
de tamanho, enquanto cresceu o
consumo de ratos -e, finalmente, de carne humana.
A população inteira estava presa numa armadilha; a Ilha da
Páscoa, como se sabe, fica no
meio do Oceano Pacífico, a milhares de quilômetros de qualquer outro lugar habitado; e não
havia como voltar até a Polinésia
dos ancestrais.
Estes passaram a ser responsabilizados, ao que tudo indica, pela tragédia. Deu-se um surto de
derrubada furiosa das estátuas,
no contexto de uma guerra civil
que durou 70 anos. As ferramentas de escultura foram readaptadas, na última descoberta tecnológica da população, para o uso
como punhais e lanças.
Especula-se que, antes disso,
ocorrera um movimento ultra-religioso: se os períodos de seca
eram crescentes, se a fome se tornava mais intensa, então os ancestrais não estavam contentes
com as homenagens: queriam
mais esculturas. No esforço de
agradar a suas exigências, a população sacrificou tudo o que restava. Só depois de praticamente
destruído o sistema ecológico da
ilha, sem que nenhum apelo humano tivesse chegado aos ouvidos
dos ancestrais, o desespero e o ressentimento iconoclasta vieram à
tona.
No auge daquela civilização,
havia uma escultura para cada
dez habitantes. No final do século
18, restava só um habitante por
estátua.
Nosso planeta inteiro como
uma Ilha da Páscoa, de onde não
temos tecnologia para fugir: será
que essa história de terror ecológico pode se repetir em larga escala?
As fotos que apareceram neste
ano, evidenciando o aquecimento
global, não são nada tranquilizadoras: as neves do Kilimanjaro
derretidas, como água escoando
num ralo gigantesco; geleiras que
retrocedem, dando espaço à terra
seca... Não sei quando começará
a derrubada das estátuas. Se é
que já não estamos vivendo essa
fase, com o terrorismo global.
Com certa distância cética, o
antropólogo Clifford Geertz qualifica esses relatos como "exercícios" no sentido de "produzir determinado estado de espírito social" ("engineering a social
mood"). Temo que seja mais do
que "estados de espírito" o que estamos discutindo aqui.
Bendito ceticismo, em todo caso: afinal, se uma coisa nos distingue da população da Ilha da Páscoa é que, apesar das agressões
constantes ao ambiente, os objetivos e obsessões dos terráqueos em
seu conjunto são bem mais variados e contraditórios que os daqueles escultores, e ninguém espera que florestas renasçam por
meio de preces e autos-da-fé.
Não é conclusão das mais otimistas. Que passe, por fim, o melancólico trocadilho: como mensagem de Páscoa, que de todo modo já vem com atraso, é o melhor que este coelho tinha a oferecer.
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