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COMIDA
Disfarçado por diferentes nomes, um dos mais pobres cortes bovinos reina
nos cardápios; conheça outras alternativas
O tédio do filé mignon
JOSIMAR MELO
CRÍTICO DA FOLHA
No meio de tanta coisa interessante, os restaurantes brasileiros
têm alguns aspectos que irritam
profundamente na comida, no
serviço. Pois de hoje em diante
pretendo dizer, sempre que possível, quais as coisas que mais me
dão desgosto. E começo gritando:
eu odeio filé mignon! Ou, para ser
mais preciso: eu odeio restaurante
que só serve filé mignon.
Talvez você ache que poucas vezes viu essa aberração num restaurante. Mas então comece a reparar na seção de "carnes" dos
cardápios que folheia pela vida.
Não é raro que, em dez pratos diferentes, todos sejam da mesmíssima carne -o nefando filé mignon-, só que encobertos por diferentes nomes, relativos a diferentes cortes da mesma carne. Sabe aquele lugar que oferece filé,
medalhão, steak, chateaubriand,
tournedos, piccata, escalope, paillard, saltimboca etc? Pois é: é tudo filé mignon. Um tédio.
Em termos gastronômicos
(considerando sabor e textura), o
filé mignon é um dos mais pobres
dos cortes bovinos. E um dos
mais caros. Posso entender que,
décadas (e séculos) atrás, ele gozasse de tanto prestígio: é muito
macio, o que se valorizava bastante em épocas em que não havia facilidade em encontrar carnes maturadas. Quem se abastecesse
num açougue comum Brasil afora
corria o risco de encontrar carnes
duras e de procedência duvidosa
(búfalo por boi, fêmea por macho,
velho por novo). Na dúvida, o filé
mignon era fácil de reconhecer e
fácil de fazer macio, não requeria
muita arte; insosso, bastava jogar
algum molho em cima para que
adquirisse sabor.
Mas hoje a situação é outra. Somente a preguiça, a inércia e a falta de imaginação fazem com que
donos de restaurantes e chefs de
cozinha se acomodem ao filé mignon, dando as costas a carnes tão
saborosas quanto as que temos no
Brasil. A ponto de o filé ser usado
até mesmo em preparações que,
feitas com cortes de dianteiro (ou
"de segunda", como dizem os cozinheiros de segunda), resultariam muito mais saborosas. Porque não fazer picadinho com
músculo? Ou steak ao molho madeira com alcatra? Ou com o miolo do contrafilé? Como ignorar
deliciosos cortes bovinos retirados de perto dos ossos (que lhes
dão sabor), ao longo das costelas
(bisteca, contrafilé, capa de contrafilé, entrecôte, prime-ribs)? Ou
provenientes da grande peça conhecida como alcatra, de onde
vêm a picanha, a maminha, o
baby-beef, o bom-bom?
Quem vai a churrascarias já experimentou estes diferentes cortes. Mas fora da grelha, os restaurantes não lhes dão um uso culinário. Então, enquanto na Itália
uma bisteca à Fiorentina é feita
com... bisteca, no Brasil muitas
cantinas a fazem com filé. Enquanto na França o boeuf bourguignon é feito com paleta, aqui é
feito com filé. Algumas cantinas
nem sequer têm, no cardápio,
uma seção de "carnes": a seção é
de "filés". Na Montecchiaro, são
38 pratos (com nomes como "filets", piccata, medaillon, polpettone, steak, strogonoff) fora a seção "escalope", com mais 12. Nas
Lellis, a seção "filés" tem 24 sugestões.
Mesmo em restaurantes mais
sofisticados, o tédio freqüentemente impera. No elegante Dressing, as três carnes bovinas do
cardápio são filé mignon, assim
como as três do moderno Sophia
e as quatro do charmoso Brasserie
Paulistta.
Mas há luz no fim do túnel, com
chefs e restaurateurs começando
a oferecer cortes de sabores e texturas diferentes (veja no quadro).
No Piselli, pode-se comer uma
bisteca à Fiorentina de verdade. O
picadinho do Carlota é feito com
músculo lentamente cozido no vinho. No Le Vin, o steak au poivre
é feito com a suculenta fraldinha
(freqüentemente usada na França). Na Brasserie Erick Jacquin, o
chef utiliza a saborosa carne de
costela num prato que entra no
cardápio em abril.
Há que se banir o filé mignon
dos cardápios? Decerto que não,
ele tem seus admiradores, e há
pratos que requerem apenas um
macio receptáculo para o molho.
O filé, que tantos serviços prestou
aos gourmets, também merece
seu lugar ao sol. O que não pode é
roubar o brilho de tantos outros
deliciosos protagonistas.
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