São Paulo, quinta-feira, 30 de março de 2006

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COMIDA

Disfarçado por diferentes nomes, um dos mais pobres cortes bovinos reina nos cardápios; conheça outras alternativas

O tédio do filé mignon

JOSIMAR MELO
CRÍTICO DA FOLHA

No meio de tanta coisa interessante, os restaurantes brasileiros têm alguns aspectos que irritam profundamente na comida, no serviço. Pois de hoje em diante pretendo dizer, sempre que possível, quais as coisas que mais me dão desgosto. E começo gritando: eu odeio filé mignon! Ou, para ser mais preciso: eu odeio restaurante que só serve filé mignon.
Talvez você ache que poucas vezes viu essa aberração num restaurante. Mas então comece a reparar na seção de "carnes" dos cardápios que folheia pela vida. Não é raro que, em dez pratos diferentes, todos sejam da mesmíssima carne -o nefando filé mignon-, só que encobertos por diferentes nomes, relativos a diferentes cortes da mesma carne. Sabe aquele lugar que oferece filé, medalhão, steak, chateaubriand, tournedos, piccata, escalope, paillard, saltimboca etc? Pois é: é tudo filé mignon. Um tédio.
Em termos gastronômicos (considerando sabor e textura), o filé mignon é um dos mais pobres dos cortes bovinos. E um dos mais caros. Posso entender que, décadas (e séculos) atrás, ele gozasse de tanto prestígio: é muito macio, o que se valorizava bastante em épocas em que não havia facilidade em encontrar carnes maturadas. Quem se abastecesse num açougue comum Brasil afora corria o risco de encontrar carnes duras e de procedência duvidosa (búfalo por boi, fêmea por macho, velho por novo). Na dúvida, o filé mignon era fácil de reconhecer e fácil de fazer macio, não requeria muita arte; insosso, bastava jogar algum molho em cima para que adquirisse sabor.
Mas hoje a situação é outra. Somente a preguiça, a inércia e a falta de imaginação fazem com que donos de restaurantes e chefs de cozinha se acomodem ao filé mignon, dando as costas a carnes tão saborosas quanto as que temos no Brasil. A ponto de o filé ser usado até mesmo em preparações que, feitas com cortes de dianteiro (ou "de segunda", como dizem os cozinheiros de segunda), resultariam muito mais saborosas. Porque não fazer picadinho com músculo? Ou steak ao molho madeira com alcatra? Ou com o miolo do contrafilé? Como ignorar deliciosos cortes bovinos retirados de perto dos ossos (que lhes dão sabor), ao longo das costelas (bisteca, contrafilé, capa de contrafilé, entrecôte, prime-ribs)? Ou provenientes da grande peça conhecida como alcatra, de onde vêm a picanha, a maminha, o baby-beef, o bom-bom?
Quem vai a churrascarias já experimentou estes diferentes cortes. Mas fora da grelha, os restaurantes não lhes dão um uso culinário. Então, enquanto na Itália uma bisteca à Fiorentina é feita com... bisteca, no Brasil muitas cantinas a fazem com filé. Enquanto na França o boeuf bourguignon é feito com paleta, aqui é feito com filé. Algumas cantinas nem sequer têm, no cardápio, uma seção de "carnes": a seção é de "filés". Na Montecchiaro, são 38 pratos (com nomes como "filets", piccata, medaillon, polpettone, steak, strogonoff) fora a seção "escalope", com mais 12. Nas Lellis, a seção "filés" tem 24 sugestões.
Mesmo em restaurantes mais sofisticados, o tédio freqüentemente impera. No elegante Dressing, as três carnes bovinas do cardápio são filé mignon, assim como as três do moderno Sophia e as quatro do charmoso Brasserie Paulistta.
Mas há luz no fim do túnel, com chefs e restaurateurs começando a oferecer cortes de sabores e texturas diferentes (veja no quadro). No Piselli, pode-se comer uma bisteca à Fiorentina de verdade. O picadinho do Carlota é feito com músculo lentamente cozido no vinho. No Le Vin, o steak au poivre é feito com a suculenta fraldinha (freqüentemente usada na França). Na Brasserie Erick Jacquin, o chef utiliza a saborosa carne de costela num prato que entra no cardápio em abril.
Há que se banir o filé mignon dos cardápios? Decerto que não, ele tem seus admiradores, e há pratos que requerem apenas um macio receptáculo para o molho. O filé, que tantos serviços prestou aos gourmets, também merece seu lugar ao sol. O que não pode é roubar o brilho de tantos outros deliciosos protagonistas.


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