São Paulo, segunda, 30 de março de 1998

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O filme e Geraldo Filme

Documentário inicia série de esforços pela recuperação da história do samba paulista

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local

Parece confuso, a princípio: o cara tinha nome de filme, mas não fazia cinema, fazia samba (e teatro, às vezes) e agora virou filme. Estranho: fazia samba e não era carioca, era paulista. Chamava-se Geraldo Filme, nasceu em 1927, nos Campos Elíseos (centro de SP), e morreu em 1995, no conjunto habitacional Educandário (periferia oeste de SP), sem nenhum reconhecimento fora dos círculos locais em que se movia.
"Geraldo Filme - Crioulo Cantando Samba Era Coisa Feia", documentário que o diretor paulistano Carlos Cortez, 40, apresenta hoje na abertura do festival "É Tudo Verdade", pode ser a partida para que se restabeleçam nós há muito desatados na história daquele que é o ritmo brasileiro por excelência. E, sim, o nome dele era mesmo Geraldo Filme de Souza.
A produção, com 52 minutos de duração, será exibida hoje, às 21h, no CineSesc, e amanhã, às 19h, no MIS. A TV Cultura, co-produtora do documentário com o CPC da Umes e a empresa Birô de Criação, exibe-o no "Cine Brasil", nesta sexta-feira, às 23h30.
O primeiro samba Filme compôs aos 10: "Eu vou mostrar/ que o povo paulista/ também sabe sambar. Eu sou paulista/ gosto de samba/ na Barra Funda/ também tem gente bamba. Somos paulistas/ e sambamos pra cachorro/ pra ser sambista/ não precisa ser do morro".
Aprendeu o samba nos núcleos de fundação do batuque paulista: o extinto largo da Banana, na Barra Funda (região oeste da cidade), e o município de Pirapora do Bom Jesus, 50 km a oeste de São Paulo.
Ajudou a organizar os cordões e blocos que mais tarde se transformariam nas escolas de samba da cidade -foi o primeiro presidente da União das Escolas de Samba de São Paulo, diretor, conselheiro e compositor (vencedor, com "Solano Trindade, Moleque do Recife") da Vai-Vai.
Gravou pouco, mas fincou pé num lado mais obscuro da história do samba, cantando ao lado de Clementina de Jesus e se associando ao sempre marginal diretor Plínio Marcos, em espetáculos teatrais/musicais como "Nas Quebradas do Mundaréu" (que teatralizava as biografias de Filme, Toniquinho Batuqueiro e Zeca da Casa Verde) e "Balbina de Iansã".
Solo mesmo, foi só um disco, "Geraldo Filme", lançado em 1980 pela Eldorado. A gravadora embarca na "ola" do documentário e promete relançar em abril o produto, assim como "O Canto dos Escravos", que ele gravou com as cantoras Clementina e Doca.
Plínio Marcos briga -mais uma vez- com a imprensa ao falar de Filme. "A imprensa é mal informada. Se vocês pesquisassem as coisas, não teriam que vir aqui fazer pergunta idiota. Descobrem que fui amigo do Geraldão, e aí é só perguntar para o Plínio."
Mais calmo, acaba falando do amigo: "Nos conhecemos no grupo do grande poeta popular Solano Trindade, no Embu, que era um verdadeiro núcleo de cultura negra, não a cidade da arte que é hoje. A polícia sempre baixava e espantava todo mundo. Geraldão não era sambista, era fundamentalmente um historiador das coisas de São Paulo, da praça da Sé, das rodas de tiririca".
Cortez reconstitui em seu filme uma roda de tiririca na Sé, com presença de Toniquinho Batuqueiro -eram agrupamentos de sambistas que batucavam em latas de graxa, dançavam uma espécie de capoeira e acabavam se dispersando por "influência" da polícia.
O diretor, com formação em psicologia social e experiência em publicidade, fala da chegada tardia ao cinema, em explicação algo análoga à que mantém Filme e seus correligionários na sombra.
"Fui parar na psicologia menos por procurar uma carreira que uma escola onde pudesse militar. Aí veio a década de 80, em que a linguagem predominante foi a dos yuppies, do pensamento pragmático. Uma porrada de gente ficou à margem -Plínio, Luiz Melodia, Itamar Assumpção, Cássia Eller."
O citado Itamar, da estirpe de compositores negros radicados em São Paulo, põe molho no documentário, fechando-o com uma versão modernizada de "Vai Cuidar de Sua Vida", de Filme.
Cortez prossegue: "Agora parece que as coisas estão ressurgindo. E, quando isso acontece, as pessoas se voltam para as entranhas do Brasil, para as raízes".
Aí entra o personagem eleito. "Geraldo Filme é quase um pretexto, permite que se passeie pela história de São Paulo, da marginalização de sua cultura negra. Acaba sendo político tocar nisso, essa cidade reprimiu ferozmente a cultura negra -hoje samba é cartão postal, tema para David Byrne."
Plínio Marcos rejeita a idéia de que o samba paulista seja mais marginalizado que o carioca -embora tenha viajado de camburão algumas vezes por conta dele. "É tudo igual. No Rio, quando a polícia baixava, os caras fugiam para o morro; aqui, tinham que se esconder nos porões."
E mostra que as coisas não mudaram tanto assim: "Pouco antes de ele morrer, íamos fazer um show no Centro Cultural, que é da Prefeitura. Na hora, o palhaço que estava lá disse que para mim não emprestava o espaço, porque eu tinha falado mal do Maluf. Aí não houve o show do Geraldão."
Não haverá mais, mas documentos pingados ainda insistem em não deixar a história se apagar.




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