São Paulo, quinta-feira, 30 de abril de 2009

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NINA HORTA

O México que dá mole!


O que mais me intriga e alegra na nossa cozinheira, além de sua comida, são suas boas letras


DE VEZ em quando aparece uma mensagem da guisandeira Lourdes Hernández-Fuentes no e-mail de muita gente. É a mexicana que tem um restaurante na própria casa e, quando resolve cozinhar, avisa sua lista de clientes e amigos e sai para o fogão.
O que mais me intriga e alegra na nossa cozinheira, além de sua comida, são suas boas letras. Vejam se isso é convite para jantar ou almoçar um mole, ou uma boa crônica.
"Chegaram ingredientes do México. Muitos. Foi difícil escolher um cardápio que fosse simples de servir e, ao mesmo tempo, atraente e saboroso. Felipe ainda demora uns dias para voltar, e todos sabemos que ele faz uma boa diferença no salão.
Então, paciência e boa letra, dizia minha professora de caligrafia. O menu: guacamole picosito com totopos, cóctel de camarones Los Bonilla, ensalada a la moda de los 70, enmoladas de almendrado rellenas de requesón. Vamos caprichar nos pratos. Guacamole como o diabo manda: nossos aguacates, tipo Hass, e chile serrano fresquinho. E a salada é uma boa lembrança da minha primeira juventude. Agora estou mais ou menos na oitava. Adorávamos essa salada. Era bem temperada, cogumelos frescos e um cheiro absurdo de bacon abrindo tudo o que se pode abrir num corpo cheio de vontades.
Como prato principal, as enmoladas. Em primeiro lugar, as tortillas que serão recheadas com requeijão mexicano e feitas à mão. A Dani trouxe do mercado de Guadalajara.
De milho branco, lindas. E o mole almendrado ficou tão gostoso, equilibrado, aveludado, tão obscuro e tão cheio de promessas que com certeza vai tocar nosso paladar numa carícia complexa.
Na semana passada, vieram fazer uma foto sobre o mole mexicano. Um dos moles, qualquer deles. Eu já estava preparando o almendrado. A ideia era fazer o passo a passo, mas o preparo do mole leva horas, incluindo a espera, aquela que faz crescer sonhos e vontades. Quando apresentei a pasta de mole que logo mais se transformaria, ao juntar água ou caldo, numa pasta mais cremosa, o comentário já era de se esperar: "Ai, vai dar uma foto horrível!". Para não dizer que parecia b... de vaca.
Isso me fez pensar nas bruxas com aqueles caldeirões cheios de misturas e cores indefiníveis, bem ao contrário dos mágicos que se vestem de gala e cujos resultados aparecem emoldurados em refinamentos e brilhos. Bruxas e mágicos sabem que correm o risco de serem queimados, exilados, condenados. Mas os mágicos contam com um palco mais luminoso, mais invejado. As bruxas são marginais, temidas, procuradas em segredo, com medo de se apostar em algo perigoso.
A comida mexicana foi durante séculos a bruxa da história. Pouco agraciada, era comida de pé num canto da cozinha enquanto a comida francesa ia à mesa. Já foi acusada de não progredir, de não entender que tem que fazer plástica para concorrer com as melhores comidas do mundo.
"Vamos fazer a foto num prato branco, para realçar?" "Não", resisti. O mole para apurar seu sabor deve ser feito na panela de barro e gostamos de servi-lo em nossos pratos de barro recém-lavados, pintados à mão, apresentando no desenho a região de onde eles vem. Não gostamos de prato branco. Da cor crua de Talaver, sim. Branco, de jeito nenhum. Já fomos enterrados com nossas panelas, nossa louça; os pratos são parte da família, espalham seu cheiro quando os lavamos e viram pratos de vaso quando se quebram. Por que não aparecer na foto?
Eles entenderam; nada de feitiços sedutores. As bruxas trabalham com suas velhas coisas conhecidas, perto do gato preto que reconhece o cheiro e sabe que chegou a hora de comer. E lambe seus bigodes, esperando a antiga transformação da matéria, sempre indistintamente desigual."
Reservas pelo guisandeira@gmail.com.

ninahorta@uol.com.br


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