São Paulo, domingo, 30 de maio de 2004

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A convite da Folha, Nelson Pereira dos Santos, Walter Salles, Bruno Barreto, Karim Aïnouz e Erik Rocha debateram no Festival de Cannes

5 vezes cinema

SÉRGIO DÁVILA
ENVIADO ESPECIAL A CANNES

Foi como a passagem de um cometa, que demora anos para acontecer e é raro de ver de novo. Aproveitando a presença de dois diretores na competição oficial de Cannes e a homenagem ao cinema novo que o festival fez, a Folha convidou cinco cineastas brasileiros a se encontrarem pela primeira vez para discutir... cinema.
Foram três gerações, do patrono Nelson Pereira dos Santos, 75, ao caçula Erik Rocha, 26, filho de Glauber Rocha (1938-1981), passando pela estrela do encontro, Walter Salles, 48, o representante da tradicional família de gente de cinema Bruno Barreto, 49, e o diretor estreante Karim Aïnouz, 38.
Cinco nomes e cinco condições. Santos era o homenageado do festival que terminou há uma semana, com seu "Vidas Secas" (1963) sendo exibido em cópia nova, assim como Barreto, que levou "Dona Flor e Seus Dois Maridos" (1976) ao cinema da praia.
Já Karim Aïnouz aproveitava o embalo de "Madame Satã" para negociar seu segundo longa; e Salles e Rocha concorriam à Palma de Ouro com "Diários de Motocicleta" e o curta "Quimera", respectivamente.
Ao final, quase por acaso, juntou-se ao grupo a argentina Lucrecia Martel, 37, que também estava na competição com "La Niña Santa", o que deu um tom mais latino-americano à discussão. Leia trechos da conversa a seguir:
 

Folha - Há dois meses, "Cidade de Deus" concorreu a quatro Oscar; agora, dois brasileiros competem pela Palma e o cinema novo ganha homenagem. O país está na moda no mundo cinematográfico?
Erik Rocha -
No caso da homenagem, é importante, pela pertinência que o cinema novo ainda tem, como movimento que revolucionou a linguagem e pensou o cinema como potência cultural.

Bruno Barreto - O mais relevante é a importância dada ao cinema latino-americano e a importância que o cinema brasileiro tem no cinema latino-americano. E a integração desse cinema, porque eu cresci perguntando isso. A gente nunca via os filmes argentinos, os mexicanos, eles também não viam os nossos filmes. Agora é que está começando a acontecer.

Nelson Pereira dos Santos - É uma beleza saber que não estamos sozinhos. A divisão política que inventaram para a América Latina é completamente artificial. Os nossos povos são tão próximos, tão parecidos, e o filme do Walter dá essa dimensão.
Eu nunca viajei de motocicleta, mas já viajei duas vezes ao Equador, ao Peru. A gente troca um pouquinho a língua, inventa um portunhol e se sente em casa. Em qualquer lugar é tão parecida a vida, tão parecido o esquema social.

Barreto - Será que o filme do Walter é o princípio do fim do Tratado de Tordesilhas cultural?

Santos - Talvez, talvez. Esse encontro lembra os anos 60, aquela eclosão que foi o cinema novo, a figura de Glauber, o revolucionário diretor de cinema, o homem que liderava a cultura brasileira, cuja herança ainda está indo na frente da gente. É preciso pensar mais e lembrar mais do Glauber.

Walter Salles - Uma cinematografia só se torna realmente forte se, de um lado, você tem os mestres filmando e, do outro, os jovens oxigenando esse cinema com primeiros filmes radicais, que põem em questão a gramática cinematográfica, a maneira de narrar uma história. Hoje, tanto os jovens cineastas quanto os nossos mestres demoram a filmar, se chocam com um modelo de produção que não permite que a nossa cinematografia seja mais expressiva do que ela é hoje.

Folha - Há algo em comum no cinema de vocês cinco, além do fato de terem nascido no mesmo país?
Salles -
Cada geração vive em diálogo ou em colisão com uma realidade político-social completamente diferente, e é natural que os filmes que surjam em reação a isso sejam também diversos entre si. Quem sou eu para comparar o que fiz ao Glauber, um sujeito que pegou na jugular da brasilidade, como disse o Hélio Pellegrino?
Não me esqueço da primeira vez que vi "Deus e o Diabo na Terra do Sol". Foi do lado do Hélio, no Cine Jóia. A luz acendeu, e eu estava grudado na cadeira. Quando percebi, o Hélio estava do meu lado, e os dois estávamos chorando e sem conseguir verbalizar aquilo que sentíamos, aí ele saiu com essa frase que não esqueci.

Karim Aïnouz - São filmes absolutamente diferentes, mas que têm um borbulhar que é muito bacana no cinema brasileiro, porque é absolutamente diverso, mas, ao mesmo tempo, a intercessão se dá justamente na procura de uma voz que, graças a Deus, nunca foi cristalizada.

Rocha - Tem a ver com a influência, também. Minha geração tem um bombardeio de influências, um caldeirão de influências. E a gente está absorvendo tudo, a publicidade, o videoclipe ou até o cinema americano, por que não?

Barreto - Mas existe, sim, um denominador comum entre os filmes brasileiros, que é como olhamos os personagens. As narrativas são completamente diferentes, mas existe o afeto, não-paternalizante, um afeto que também é duro. Ontem, revendo a primeira hora de "Vidas Secas", vi um grande senso de humor, que não lembrava que tinha, quando a Vitória vai e mata aquele papagaio que fica ali enchendo o saco...

Santos - Como a ave nem sabia falar, mata-se e come-se. [Risos]

Barreto - "Vidas Secas" é considerado um filme "neo-realista", mas aquele senso de humor não tinha nos neo-realistas, não é? Estou numa posição curiosa aqui, porque eu me sinto um pouco filho do Glauber também, porque ele morou na minha casa quando acabou de fazer "Deus e o Diabo", e eu fui ver muitos filmes pela primeira vez levado por ele. Então vejo nos meus filmes o gosto pelo espetáculo, que vem dele.

Santos - Tem uma coisa: o cinema novo não foi um movimento homogêneo. Éramos 15, entre realizadores e críticos. Era um cinema de autor, mas um cinema autoritário, também. Mas foi o último movimento do modernismo. Quer dizer, ninguém é filho de ninguém, mas também ninguém nasceu sozinho.
Outra coisa: nos anos 60, a gente tinha de fazer um cinema a favor da mudança social no país, que era injusto. Mesmo as pessoas que não tinham essa vocação iam fazer e aí ficavam aqueles filmes meio nhenhenhém, não é? Hoje, não, há uma liberdade extrema, uma pluralidade, ninguém mais fica dizendo: "Não é bom porque não esculhambou a ditadura".

Folha - Entre os dez filmes mais vistos desde a retomada, a maioria é da Globo Filmes ou sobre programas de TV. A televisão é fundamental na indústria do cinema?
Salles -
O Godard diz que a diferença entre televisão e cinema é que a primeira fabrica o esquecimento, e o segundo, quando é bom, traz consigo uma possibilidade de memória. Se os filmes que namoram a TV vão repetir uma estética puramente televisiva, eu não vejo o porquê da existência. Além disso, sou totalmente contra que esses subprodutos televisivos sejam feitos com o dinheiro subsidiado para o cinema. Isso é um contra-senso, uma aberração do sistema atual.
Mas, interrompendo brutalmente nossa conversa, quero lhes apresentar a Lucrecia [Martel, a cineasta argentina da Província de Salta, que passava e se senta].

Folha - Discutíamos a relação TV-cinema. Como é na Argentina?
Lucrecia Martel -
O que é bastante irritante na Argentina é que a TV deveria pagar certos impostos, que deveriam ir a um fundo para a produção de cinema nacional. Isso não só não acontece como as emissoras usam de renúncias fiscais para produzir filmes que são na verdade subprodutos de seus programas televisivos.

Folha - Discutíamos também se o cinema brasileiro tem um rosto.

Martel - O argentino, não. Isso é uma bobagem inventada pela imprensa. Meu cinema é diferente, por exemplo, do feito em Buenos Aires, que é diferente entre si.


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