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Livro/crítica
Frei Betto testemunha desmoralização da esquerda no poder
MICHAEL LÖWY
ESPECIAL PARA A FOLHA
Como se sabe, o autor
deste belo ensaio sobre
o papel corruptor do
poder -a picada da "mosca
azul" do titulo- é um dos mais
importantes teólogos da libertação e um "companheiro de
caminhada" do Partido dos
Trabalhadores. Se eu não aderi,
explica ele com ironia, é porque
temia que os partidos reproduzissem os vícios das igrejas. É
com nostalgia que ele se lembra
do PT que conheceu anos atrás,
o partido do trabalho de base,
do sonho socialista, do orgulho
de ser de esquerda, da luta pela
reforma agrária e contra o pagamento da dívida externa. Insensivelmente, no curso dos
anos 90, o PT foi se distanciando tanto dos movimentos sociais como de seus objetivos
institucionais, para privilegiar
as posições de poder.
Betto atribui essa mudança
em grande parte à queda do
Muro de Berlim, que teria obscurecido o horizonte utópico
do PT e sua perspectiva socialista. É o único argumento do livro que me parece discutível: a
maioria dos quadros do PT
-em suas diferentes sensibilidades- nunca teve por referência ideológica principal os
assim chamados "países do socialismo real". Aliás, em 1990,
um ano depois da queda do muro, por ocasião de seu congresso, o partido aprovou um documento, "O Socialismo Petista",
que reafirma, da forma a mais
categórica, o compromisso anticapitalista e socialista do PT.
Em todo caso, Frei Betto, como a grande maioria da população brasileira, e os militantes e
simpatizantes do PT em particular, recebeu com grande entusiasmo a vitória de Lula nas
eleições de 2002. Nesse contexto é que ele aceita organizar,
com um outro amigo de Lula,
Oded Grajew, a mobilização social no quadro da grande iniciativa do novo governo, o programa Fome Zero. Dois anos mais
tarde, desencantado, ele se demite: "Quando me dei conta",
escreve, "de que o barco não ia
na direção prevista, mas em
sentido contrário, não tive outra escolha senão deixar ali minhas bagagens e mergulhar no
rio...".
Segundo Betto, o governo ensaiou algumas políticas sociais
inovadoras, mas, no essencial,
ficou refém das elites e dos
mercados financeiros. Resultado: "Um pequeno núcleo dirigente do PT conseguiu em poucos anos o que a direita não obteve em décadas nem nos anos
sombrios da ditadura: desmoralizar a esquerda". Pior do que
as maracutaias é ver o medo,
frente às injunções dos banqueiros, vencer a esperança.
O que aconteceu? A sede de
poder -a "mosca azul"- e a
adaptação à religião do mercado conduziram à perda de perspectiva estratégica e ao desmoronamento do horizonte histórico. A mística se tornou máquina. O poder deixou de ser
um instrumento de mudança
social para se tornar -como o
havia previsto Robert Michels
em sua clássica obra sobre os
partidos políticos de massas-
um fim em si. E os dirigentes
políticos, acavalados no poder,
se tornaram amnésicos, fugindo de suas próprias palavras
anteriores como o Diabo da
cruz. Em um dos comentários
mais importantes do livro, Betto constata: "A política amesquinha-se quando perde o horizonte utópico".
E agora, José? Convencido
de que o capitalismo é intrinsecamente incapaz de construir
um mundo de justiça e de liberdade, Betto se dispõe a recomeçar. Um outro mundo é possível, e devemos chamá-lo por
seu nome: socialismo. Na luta
por esta nova sociedade, é legítima e necessária a convergência entre marxistas e cristãos,
porque a divisão da sociedade
não se dá entre crentes e não-crentes, mas entre opressores e
oprimidos...
Um livro que testemunha ao
mesmo tempo a profunda crise
que atravessa a esquerda brasileira e o obstinado engajamento ético e político do autor.
MICHAEL LÖWY é autor de "Walter Benjamin,
Aviso de Incêndio" (Boitempo, 2005)
A MOSCA AZUL: REFLEXÃO
SOBRE O PODER
Autor: Frei Betto
Editora: Rocco
Quanto: R$ 32 (317 págs.)
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