São Paulo, sábado, 30 de junho de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Romance

Mario Prata usa Dante em sátira feita para fisgar leitor

Em "Purgatório", autor revê a metáfora do inferno para descrever a vida cotidiana

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

A obra que ostensivamente sustenta o enredo deste romance de Mario Prata é, claro, a "Divina Comédia", de Dante Alighieri. Como lá, a musa do protagonista, uma antiga paixão da juventude, pretende guiar-lhe na trajetória do além-túmulo.
Como lá, igualmente, há um Virgílio, aqui um subalterno do bancário Dante. Ele acompanha o herói pelo inferno que, na ficção de Prata, também é sinônimo de nossa vida cotidiana. Em reforço biográfico ao pastiche, o Dante de Prata, como o Alighieri, também deixou de casar-se com Beatriz para contrair esponsais com uma dama chamada Gemma.
Essa aproximação ostensiva é, porém, no miúdo e no acirrado da análise, no máximo superficial. Enquanto o florentino procurou, em sua obra máxima, compendiar todo conhecimento, toda literatura, paixão e ideologia de sua época, o objetivo do paulista é bem menos pretensioso.
Prata pretende divertir. Escrita originalmente na forma de folhetim, sua ficção vale-se de todos os recursos para, digamos, fisgar o leitor: humor, escracho, suspense, ganchos, reviravoltas e paralelos espertos ou não.
No romance de Prata, o inferno é bem aqui. Virgílio não é o grande poeta que compôs a monumental "Eneida", mas um escritor frustrado que, nas horas vagas, se entretém com rapazolas. Ninguém parece destinado ao Paraíso, nem mesmo Beatriz, que fica mesmo no Purgatório -e, depois descobrimos, nem isso. Nesta narrativa em que o clichê é a norma e a ascese é impossível, tudo é reduzido, tipificado, infantilizado. Há uma preferência aos extremos sem meios-tons, verificada na tendência de até literalmente esticarem-se ou encurtarem-se os personagens.
A figura que "materializa" Beatriz na Terra (a amada morreu num desastre aéreo), por exemplo, é uma médium anã. Gemma, em dado momento, é acometida de certa "síndrome de Pantagruel", que a faz crescer diariamente.
Mais significativo, o psicanalista que tenta escrever "A Verdadeira História de Dante e Beatriz" é chamado Júnior, e depois, apenas Juninho. Ao contrário do "pai", Freud claro, criador da psicanálise, Prata não se ocupa dos duplos sentidos, das camadas de significado que se ocultam sob o texto, do vórtice tenebroso das paixões, das razões que a própria razão desconhece. Dizer que a sátira não comporta profundidades é uma injustiça à sátira.
Há sátiras e sátiras, e a de Prata é refém de nossos dias -refém da idéia de que a atenção de leitores apressados, que não lêem jornal e muito menos folhetins, precisa ser capturada a todo custo, nem que seja por intermédio de estímulos rasos e espetaculares, como numa novela de televisão. As telenovelas, sabemos, beberam nos antigos folhetins.
Hoje são os folhetins que se inspiram no "vale a pena ver de novo". Um autor bastante citado em "Purgatório" é Machado de Assis. Bacamarte, protagonista de "O Alienista" é, aliás, nome do chefe de Dante.
A obra do carioca, cujas "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e cujo próprio "O Alienista" foram publicados em folhetim, serve de contraponto a este romance. A distância que separa a sátira de Machado do sucedâneo de Prata é o melhor exemplo da falta de rumo em que se encontram hoje nossos autores, leitores e, por que não dizer, nossa sociedade.


PURGATÓRIO: A VERDADEIRA HISTÓRIA DE DANTE E BEATRIZ
Autor:
Mario Prata
Editora: Planeta
Quanto: R$ 39,90 (272 págs.)
Cotação: regular


Texto Anterior: Livros - Crítica/coletânea: Ruy Castro traça panorama musical com marca própria
Próximo Texto: Vitrine brasileira
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.