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Romance
Mario Prata usa Dante em sátira feita para fisgar leitor
Em "Purgatório", autor revê a metáfora do inferno para descrever a vida cotidiana
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
A obra que ostensivamente sustenta o enredo deste romance de
Mario Prata é, claro, a "Divina
Comédia", de Dante Alighieri.
Como lá, a musa do protagonista, uma antiga paixão da juventude, pretende guiar-lhe na trajetória do além-túmulo.
Como lá, igualmente, há um
Virgílio, aqui um subalterno do
bancário Dante. Ele acompanha o herói pelo inferno que, na
ficção de Prata, também é sinônimo de nossa vida cotidiana.
Em reforço biográfico ao pastiche, o Dante de Prata, como o
Alighieri, também deixou de
casar-se com Beatriz para contrair esponsais com uma dama
chamada Gemma.
Essa aproximação ostensiva
é, porém, no miúdo e no acirrado da análise, no máximo superficial. Enquanto o florentino procurou, em sua obra máxima, compendiar todo conhecimento, toda literatura, paixão
e ideologia de sua época, o objetivo do paulista é bem menos
pretensioso.
Prata pretende divertir. Escrita originalmente na forma
de folhetim, sua ficção vale-se
de todos os recursos para, digamos, fisgar o leitor: humor, escracho, suspense, ganchos, reviravoltas e paralelos espertos
ou não.
No romance de Prata, o inferno é bem aqui. Virgílio não é o
grande poeta que compôs a monumental "Eneida", mas um
escritor frustrado que, nas horas vagas, se entretém com rapazolas. Ninguém parece destinado ao Paraíso, nem mesmo Beatriz, que fica mesmo no
Purgatório -e, depois descobrimos, nem isso.
Nesta narrativa em que o clichê é a norma e a ascese é impossível, tudo é reduzido, tipificado, infantilizado. Há uma
preferência aos extremos sem
meios-tons, verificada na tendência de até literalmente esticarem-se ou encurtarem-se os
personagens.
A figura que "materializa"
Beatriz na Terra (a amada morreu num desastre aéreo), por
exemplo, é uma médium anã.
Gemma, em dado momento, é
acometida de certa "síndrome
de Pantagruel", que a faz crescer diariamente.
Mais significativo, o psicanalista que tenta escrever "A Verdadeira História de Dante e
Beatriz" é chamado Júnior, e
depois, apenas Juninho. Ao
contrário do "pai", Freud claro,
criador da psicanálise, Prata
não se ocupa dos duplos sentidos, das camadas de significado
que se ocultam sob o texto, do
vórtice tenebroso das paixões,
das razões que a própria razão
desconhece.
Dizer que a sátira não comporta profundidades é uma injustiça à sátira.
Há sátiras e sátiras, e a de
Prata é refém de nossos dias
-refém da idéia de que a atenção de leitores apressados, que
não lêem jornal e muito menos
folhetins, precisa ser capturada
a todo custo, nem que seja por
intermédio de estímulos rasos
e espetaculares, como numa
novela de televisão.
As telenovelas, sabemos, beberam nos antigos folhetins.
Hoje são os folhetins que se inspiram no "vale a pena ver de
novo". Um autor bastante citado em "Purgatório" é Machado
de Assis. Bacamarte, protagonista de "O Alienista" é, aliás,
nome do chefe de Dante.
A obra do carioca, cujas "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e cujo próprio "O Alienista" foram publicados em folhetim, serve de contraponto a este romance. A distância que separa a sátira de Machado do sucedâneo de Prata é o melhor
exemplo da falta de rumo em
que se encontram hoje nossos
autores, leitores e, por que não
dizer, nossa sociedade.
PURGATÓRIO: A VERDADEIRA
HISTÓRIA DE DANTE E BEATRIZ
Autor: Mario Prata
Editora: Planeta
Quanto: R$ 39,90 (272 págs.)
Cotação: regular
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