São Paulo, sábado, 30 de julho de 2005

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A TORTURA DO SILÊNCIO

Em "O Diário de Nina", autora relata rotina usual de adolescente, mas mostra seu amadurecimento prematuro

Obra revela olhar crítico de garota soviética

DA REPORTAGEM LOCAL

Nem só de sofrimento e resistência, raiva e denúncia, se constitui "O Diário de Nina". Diferentemente de Anne Frank, a garota judia de Amsterdã que vivia escondida dos nazistas em uma espécie de sótão secreto, e cujo diário se tornou o documento mais lido sobre o Holocausto no século 20, Nina Lugovskaia mantinha a rotina usual dos adolescentes de todo o mundo. Ia para a escola todos os dias, reclamava dos deveres e dos professores, apaixonava-se seguidamente e lamentava os garotos que não lhe dirigiam olhares.
Engana-se, entretanto, aquele que esperar do texto a banalidade rotineira das agendas convencionais. "Seu cotidiano era como o de qualquer outra menina soviética, mas suas observações sociais são de um espírito crítico singular, quase que só encontrado nessa específica garota oposicionista numa estranha fase de transição", afirma a russa Elena Kostioukovitch, autora do posfácio da edição italiana do diário, da qual a versão brasileira foi traduzida.
Em 5 de novembro de 1932, por exemplo, aos 13 anos, Nina escreve: "Hoje nos obrigaram a marchar pelas ruas, coisa que me deixou morta de raiva, e me irritou mais ainda a situação de impotência em que me encontrava. Enquanto caminhávamos pelo chão lamacento e frio (...), eu insultava dentro de mim o poder soviético com todas as suas invenções, os méritos de que ele se vangloria diante dos estrangeiros etc., e fazia caretas de repulsa pelos cantos desafinados e desordenados que somos obrigados a entoar(...)".
Mas não pense o leitor que as dificuldades que enfrentava se resumiam a formalidades patrióticas. Afora aspectos estruturais de sua vida, como a fome freqüente, uma vez que as refeições se constituíam de chá, pão e batatas, e o fato de ter um único traje, que usava todo dia, revela-se no texto o medo que a garota sente diante da eterna iminência de uma invasão policial. Um medo que a transforma, a faz amadurecer prematuramente. No meio de uma noite, quando batem à porta, é ela quem alerta a mãe: "Pergunte quem é". Descobre, com alívio temporário, que quem bate são as irmãs, que assustadas relatam o assassinato do pai de uma amiga, em um apartamento comunitário.
Para além das ameaças do Estado Soviético, é com o pai que a garota mantém relação mais complexa e ambígua. "Nina não gostava muito de seu pai, mas quando ele foi exilado ganhou um novo significado. Tornou-se um modelo moral e intelectual para ela, que acabava repetindo mesmo algumas tolices que ele dizia", analisa Kostioukovitch. Em 11 de janeiro de 1936, dessa forma, acompanhamos seu dilema quanto a visitar ou não o pai na prisão, na incerteza de que queira de fato encontrá-lo, mas ansiando por sua apreciação e sua estima.
Por fim, o diário de Nina diferencia-se também por sua ambição literária, refletida nas detalhadas descrições que faz das paisagens e das feições dos colegas por quem se apaixona. Afirma inúmeras vezes que quer ser escritora, declarando a vontade de escrever um romance. O título? "À Procura da Felicidade". Talvez não surpreenda tanto que, anos mais tarde, cumprida sua pena, tenha preferido tornar-se pintora. (JFu)


O Diário de Nina
Autor:
Nina Lugovskaia
Tradutora: Joana Angélica d'Avila Melo
Editora: Ediouro
Quanto: R$ 49,90 (416 págs.)


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