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A TORTURA DO SILÊNCIO
Em "O Diário de Nina", autora relata rotina usual de adolescente, mas mostra seu amadurecimento prematuro
Obra revela olhar crítico de garota soviética
DA REPORTAGEM LOCAL
Nem só de sofrimento e resistência, raiva e denúncia, se constitui "O Diário de Nina". Diferentemente de Anne Frank, a garota judia de Amsterdã que vivia escondida dos nazistas em uma espécie
de sótão secreto, e cujo diário se
tornou o documento mais lido sobre o Holocausto no século 20, Nina Lugovskaia mantinha a rotina
usual dos adolescentes de todo o
mundo. Ia para a escola todos os
dias, reclamava dos deveres e dos
professores, apaixonava-se seguidamente e lamentava os garotos
que não lhe dirigiam olhares.
Engana-se, entretanto, aquele
que esperar do texto a banalidade
rotineira das agendas convencionais. "Seu cotidiano era como o
de qualquer outra menina soviética, mas suas observações sociais
são de um espírito crítico singular, quase que só encontrado nessa específica garota oposicionista
numa estranha fase de transição",
afirma a russa Elena Kostioukovitch, autora do posfácio da edição italiana do diário, da qual a
versão brasileira foi traduzida.
Em 5 de novembro de 1932, por
exemplo, aos 13 anos, Nina escreve: "Hoje nos obrigaram a marchar pelas ruas, coisa que me deixou morta de raiva, e me irritou
mais ainda a situação de impotência em que me encontrava. Enquanto caminhávamos pelo chão
lamacento e frio (...), eu insultava
dentro de mim o poder soviético
com todas as suas invenções, os
méritos de que ele se vangloria
diante dos estrangeiros etc., e fazia caretas de repulsa pelos cantos
desafinados e desordenados que
somos obrigados a entoar(...)".
Mas não pense o leitor que as dificuldades que enfrentava se resumiam a formalidades patrióticas.
Afora aspectos estruturais de sua
vida, como a fome freqüente, uma
vez que as refeições se constituíam de chá, pão e batatas, e o fato de ter um único traje, que usava
todo dia, revela-se no texto o medo que a garota sente diante da
eterna iminência de uma invasão
policial. Um medo que a transforma, a faz amadurecer prematuramente. No meio de uma noite,
quando batem à porta, é ela quem
alerta a mãe: "Pergunte quem é".
Descobre, com alívio temporário,
que quem bate são as irmãs, que
assustadas relatam o assassinato
do pai de uma amiga, em um
apartamento comunitário.
Para além das ameaças do Estado Soviético, é com o pai que a garota mantém relação mais complexa e ambígua. "Nina não gostava muito de seu pai, mas quando ele foi exilado ganhou um novo significado. Tornou-se um
modelo moral e intelectual para
ela, que acabava repetindo mesmo algumas tolices que ele dizia",
analisa Kostioukovitch. Em 11 de
janeiro de 1936, dessa forma,
acompanhamos seu dilema quanto a visitar ou não o pai na prisão,
na incerteza de que queira de fato
encontrá-lo, mas ansiando por
sua apreciação e sua estima.
Por fim, o diário de Nina diferencia-se também por sua ambição literária, refletida nas detalhadas descrições que faz das paisagens e das feições dos colegas por
quem se apaixona. Afirma inúmeras vezes que quer ser escritora, declarando a vontade de escrever um romance. O título? "À Procura da Felicidade". Talvez não
surpreenda tanto que, anos mais
tarde, cumprida sua pena, tenha
preferido tornar-se pintora. (JFu)
O Diário de Nina
Autor: Nina Lugovskaia
Tradutora: Joana Angélica d'Avila Melo
Editora: Ediouro
Quanto: R$ 49,90 (416 págs.)
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