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BERNARDO CARVALHO
O som e os corpos
A cineasta argentina Lucrecia Martel já disse que
não tem nenhuma cultura musical: "Por não escutar música (...),
você acaba prestando mais atenção a todo o resto" ("Generaciones 60/90 - Cine Argentino Independiente", publicado pelo Museu de Arte Latino-americana de
Buenos Aires, Malba).
Graças a essa "deficiência",
Martel acabou dando ao som
ambiente a atenção que a música
não lhe despertava. Pôs o som no
lugar da música. Em "O Pântano" (2001), filmado na cidade de
Salta, no norte da Argentina, isso
é claro: "Salta fica num vale e o
verão é a época das tempestades.
São muito fortes, com muita descarga elétrica, muito ruidosas.
(...) Você tem todo esse som, com
os morros em volta formando
uma caixa. (...) As freqüências
baixas te alteram organicamente".
O cinema de Martel é físico, sexualizado nos menores detalhes.
A mera presença dos corpos já é
erotizada. O que se vê nos seus filmes é a afirmação simultânea da
materialidade física e da imaterialidade das fantasias, os dois
pólos do desejo - mas também
do cinema, cuja "matéria" são
imagens e espectros e cujo potencial erótico é óbvio.
O cinema de Martel é feito de
texturas e o som é uma delas. O
som, em princípio imaterial, torna-se físico. Em "O Pântano", o
sentido misterioso (a expectativa
do horror, a iminência dos acidentes) que o espectador pressentia diante daquele mundo úmido
e viscoso era resultado dessa radicalização da dimensão física de
todas as coisas. A diferença em relação a "A Menina Santa", segundo longa-metragem de Martel,
em cartaz em São Paulo, é que a
relação do físico com o imaterial
agora é verbalizada. É como se "A
Menina Santa" fosse uma alegoria do que Martel tinha mantido
implícito, orgânico e estrutural
no filme anterior.
A relação entre os corpos e os
sons tornou-se o próprio assunto
dos diálogos entre os personagens. O filme se passa num hotel
de província onde se reúne um
congresso médico. O protagonista, um otorrinolaringologista
com o desejo à flor da pele, é dominado pela fantasia dos encontros sexuais furtivos e anônimos
com meninas adolescentes. Durante o congresso, o objeto do seu
desejo será projetado - sem que
ele se dê conta, já que a encontra
casualmente na rua - na sobrinha do dono do hotel, a "menina
santa" do título.
Enquanto isso, flerta com a mãe
da menina, uma mulher que voltou a viver no hotel da família depois de se separar do marido e
que reclama de ouvir zumbidos.
Ele lhe propõe um teste auditivo e
a tranqüiliza: "A maioria das pessoas escuta coisas". É tudo o que a
filha dela quer. A menina aguarda um chamado. Participa de um
grupo de adolescentes católicas,
com o desejo tão à flor da pele
quanto o do médico, que se reúnem para cantar, contar casos, ler
e decifrar textos religiosos, à espera de um sinal místico. "É preciso
estar atenta ao chamado de
Deus", "Deus dá sinais", "Consagro a Deus os meus ouvidos", elas
repetem.
No teste auditivo, a mãe escuta
algumas palavras erradas. O resultado vai qualificá-la para o
papel de paciente na encenação
de uma consulta com o otorrino,
diante do público, no encerramento do congresso. É também
diante de uma apresentação pública, na rua, entre os curiosos
que assistem a um músico ambulante que transforma seus gestos
em sons por meio de um amplificador, que o doutor vai bolinar
pela primeira vez a menina, protegido pelo anonimato, sem saber
que ela é filha da mulher com
quem está flertando.
Por associar a fantasia mística
das reuniões do grupo de adolescentes católicas à urgência da
materialização do seu desejo, a
menina vai ver um sinal de Deus
no homem que a bolina (e que a
toca praticamente sem tocá-la,
apenas roçando seu corpo, a
exemplo do músico ambulante
que tira sons do ar, gesticulando,
sem tocar realmente nenhum instrumento). Ela crê ouvir ali, na
"imaterialidade" daquele toque,
o chamado de Deus.
Na segunda vez que o doutor a
molesta, sempre na rua, casualmente, entre os espectadores do
fenômeno musical, ela ousa por
fim corresponder ao toque. Toca a
mão dele, olha-o nos olhos. Com
isso, ganha corpo diante dele,
rompe a fantasia do anonimato,
torna-se uma pessoa. Já não é
simples imagem. Dá materialidade ao que era imaterial, torna
concreto o que era imaginação. O
médico foge, perturbado, como se
alguém o tivesse acordado no
meio de um sonho, como se o tivessem pego em flagrante.
Num movimento inverso ao do
músico ambulante que transforma gestos no ar em sons (o mesmo princípio do cinema de Martel, que parte de uma representação física para aí encontrar os
ecos do que não se compreende,
como os indícios "místicos" que as
adolescentes católicas querem
tanto ver na realidade material),
a menina destrói a fantasia ao
trazê-la para o real. Na sua inocência, é a missão que acredita ter
recebido de Deus.
No final, quando a fantasia já
não puder se sustentar e o escândalo for iminente, ela vai sussurrar alguma coisa no ouvido do
médico, para em seguida tranqüilizá-lo: "Você é bom". Mas o filme
não deixará o espectador ouvir o
que ela disse no ouvido dele. O espectador que esperava um sinal
terá que se contentar com a própria imaginação. Terá que fantasiar no lugar dos personagens. É a
missão do cinema.
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