São Paulo, terça-feira, 30 de agosto de 2005

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BERNARDO CARVALHO

O som e os corpos

A cineasta argentina Lucrecia Martel já disse que não tem nenhuma cultura musical: "Por não escutar música (...), você acaba prestando mais atenção a todo o resto" ("Generaciones 60/90 - Cine Argentino Independiente", publicado pelo Museu de Arte Latino-americana de Buenos Aires, Malba).
Graças a essa "deficiência", Martel acabou dando ao som ambiente a atenção que a música não lhe despertava. Pôs o som no lugar da música. Em "O Pântano" (2001), filmado na cidade de Salta, no norte da Argentina, isso é claro: "Salta fica num vale e o verão é a época das tempestades. São muito fortes, com muita descarga elétrica, muito ruidosas. (...) Você tem todo esse som, com os morros em volta formando uma caixa. (...) As freqüências baixas te alteram organicamente".
O cinema de Martel é físico, sexualizado nos menores detalhes. A mera presença dos corpos já é erotizada. O que se vê nos seus filmes é a afirmação simultânea da materialidade física e da imaterialidade das fantasias, os dois pólos do desejo - mas também do cinema, cuja "matéria" são imagens e espectros e cujo potencial erótico é óbvio.
O cinema de Martel é feito de texturas e o som é uma delas. O som, em princípio imaterial, torna-se físico. Em "O Pântano", o sentido misterioso (a expectativa do horror, a iminência dos acidentes) que o espectador pressentia diante daquele mundo úmido e viscoso era resultado dessa radicalização da dimensão física de todas as coisas. A diferença em relação a "A Menina Santa", segundo longa-metragem de Martel, em cartaz em São Paulo, é que a relação do físico com o imaterial agora é verbalizada. É como se "A Menina Santa" fosse uma alegoria do que Martel tinha mantido implícito, orgânico e estrutural no filme anterior.
A relação entre os corpos e os sons tornou-se o próprio assunto dos diálogos entre os personagens. O filme se passa num hotel de província onde se reúne um congresso médico. O protagonista, um otorrinolaringologista com o desejo à flor da pele, é dominado pela fantasia dos encontros sexuais furtivos e anônimos com meninas adolescentes. Durante o congresso, o objeto do seu desejo será projetado - sem que ele se dê conta, já que a encontra casualmente na rua - na sobrinha do dono do hotel, a "menina santa" do título.
Enquanto isso, flerta com a mãe da menina, uma mulher que voltou a viver no hotel da família depois de se separar do marido e que reclama de ouvir zumbidos. Ele lhe propõe um teste auditivo e a tranqüiliza: "A maioria das pessoas escuta coisas". É tudo o que a filha dela quer. A menina aguarda um chamado. Participa de um grupo de adolescentes católicas, com o desejo tão à flor da pele quanto o do médico, que se reúnem para cantar, contar casos, ler e decifrar textos religiosos, à espera de um sinal místico. "É preciso estar atenta ao chamado de Deus", "Deus dá sinais", "Consagro a Deus os meus ouvidos", elas repetem.
No teste auditivo, a mãe escuta algumas palavras erradas. O resultado vai qualificá-la para o papel de paciente na encenação de uma consulta com o otorrino, diante do público, no encerramento do congresso. É também diante de uma apresentação pública, na rua, entre os curiosos que assistem a um músico ambulante que transforma seus gestos em sons por meio de um amplificador, que o doutor vai bolinar pela primeira vez a menina, protegido pelo anonimato, sem saber que ela é filha da mulher com quem está flertando.
Por associar a fantasia mística das reuniões do grupo de adolescentes católicas à urgência da materialização do seu desejo, a menina vai ver um sinal de Deus no homem que a bolina (e que a toca praticamente sem tocá-la, apenas roçando seu corpo, a exemplo do músico ambulante que tira sons do ar, gesticulando, sem tocar realmente nenhum instrumento). Ela crê ouvir ali, na "imaterialidade" daquele toque, o chamado de Deus.
Na segunda vez que o doutor a molesta, sempre na rua, casualmente, entre os espectadores do fenômeno musical, ela ousa por fim corresponder ao toque. Toca a mão dele, olha-o nos olhos. Com isso, ganha corpo diante dele, rompe a fantasia do anonimato, torna-se uma pessoa. Já não é simples imagem. Dá materialidade ao que era imaterial, torna concreto o que era imaginação. O médico foge, perturbado, como se alguém o tivesse acordado no meio de um sonho, como se o tivessem pego em flagrante.
Num movimento inverso ao do músico ambulante que transforma gestos no ar em sons (o mesmo princípio do cinema de Martel, que parte de uma representação física para aí encontrar os ecos do que não se compreende, como os indícios "místicos" que as adolescentes católicas querem tanto ver na realidade material), a menina destrói a fantasia ao trazê-la para o real. Na sua inocência, é a missão que acredita ter recebido de Deus.
No final, quando a fantasia já não puder se sustentar e o escândalo for iminente, ela vai sussurrar alguma coisa no ouvido do médico, para em seguida tranqüilizá-lo: "Você é bom". Mas o filme não deixará o espectador ouvir o que ela disse no ouvido dele. O espectador que esperava um sinal terá que se contentar com a própria imaginação. Terá que fantasiar no lugar dos personagens. É a missão do cinema.


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