São Paulo, sexta-feira, 30 de setembro de 2005

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CRÍTICA

Diretora capta essência do diário e constrói obra exata e agradável

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Helena Morley foi uma amadora. Não escrevia para fazer carreira, fama ou dinheiro. Seu diário, recolhido em "Minha Vida de Menina", é constituído de notações cujo objetivo principal é reter os acontecimentos recentes em sua vida de jovem provinciana. Não por acaso, seduziu gente como Guimarães Rosa e Georges Bernanos, Roberto Schwartz e Alexandre Eulálio.
Também Helena Solberg trabalha um pouco como amadora ao adaptar o livro de Morley para o cinema. Numa época de profissionalismo triunfante, "Vida de Menina" parece fazer questão de manter certos traços de amador -ou seja, daquele que ama. Temos, por exemplo, uma penca de atores desconhecidos -alguns saudavelmente canastrões-, a garantir um tipo de interpretação bem distante daquele que, por força de vermos na Rede Globo, muitos têm na conta de universal. Ou ainda um roteiro que despreza a evolução, centrando-se em cada acontecimento (como se espera de um diário).
Esse amadorismo não deve ser confundido com insuficiência. Ao contrário. Se o cinema brasileiro recente tem se esmerado em construir cuidadosas insignificâncias, Helena Solberg produziu uma peça tão descontraída quanto encantadora. Aspectos como fotografia, direção de arte e montagem completam-se suavemente, no sentido de reconstituir a vida em Diamantina: a luz e o ritmo se harmonizam, enquanto os atores (por uma vez, num filme de época brasileiro) vestem trajes do fim do século 19 com a mesma naturalidade com que portariam um traje contemporâneo.
Ludmila Dayer, atriz de que ninguém parece gostar quando trabalha nas novelas de TV, se sai admiravelmente na pele da menina que cresce em plena decadência das lavras de Diamantina, registrando com percepção aguda eventos que, em sua despretensão, acabam revelando muito do que era o Brasil na passagem do Império à República (e, afinal, do que continua sendo até hoje).
Não que fosse essa a intenção do livro. E, se era a intenção do filme, Solberg conseguiu disfarçá-la com maestria. Pois a primeira questão que nos lança um diário é a do sentido. O que dá sentido a um diário? Ao contrário da narrativa romanesca, ninguém sabe onde ele vai dar, se vai formar um todo coerente ou não. Ele se constrói ao sabor do acaso. O significado nunca precede a escrita, portanto, e eventualmente pode nunca se revelar.
"Vida de Menina" sabe não atropelar esse destino dos diários, intrometendo ali interpretações capazes de revelar a inteligência das roteiristas, mas capazes igualmente de arruinar um filme.
Não há sinal de inteligência neste filme -e isso é um baita elogio. Porque cabe a nós juntar as peças e encontrar um significado para essas imagens. Ao filme cabe mostrar as imagens, criando, na medida do possível, um correlato do fraseado ao mesmo tempo seco e colorido de Helena Morley.
Tarefa que Helena Solberg cumpre com folga, há que se dizer. "Vida de Menina" cria uma das narrativas mais exatas, agradáveis e agudas realizadas no Brasil nos últimos anos.


Vida de Menina
    
Direção: Helena Solberg
Produção: Brasil, 2005
Com: Ludmila Dayer, Daniela Escobar, Dalton Vigh
Quando: a partir de hoje nos cines Espaço Unibanco, Cine Morumbi, Lumière, Pátio Higienópolis e circuito


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