São Paulo, sexta-feira, 30 de setembro de 2005

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ANÁLISE

Violeira era a representação do Brasil

RONALDO EVANGELISTA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Mulher da vida, parteira, benzedeira, roceira, matuta, humilde, desapressada, analfabeta, musicista genial e seguindo as próprias lógicas, morais, crenças e superstições, Helena Meirelles era a perfeita representação do Brasil, este Brasil do fim do mundo tão desconhecido pela urbanidade, este Brasil de sabedoria instintiva, virtudes em estado bruto e talentos espontâneos escondidos entre boiadeiros, em cada quizumba, cada mandiocal, cada roça e cada bordel.
Vinda dos cafundós do Mato Grosso do Sul, entremeios perto do Paraguai, a jovem caipira nascida em 1924 cresceu no sertão bruto, em meio à vida rústica, ouvindo os ritmos regionais de polcas, chalanas, chamamés e rasqueados, além da música paraguaia. O tio violeiro lhe inspirou, mas a família rejeitava o talento, ameaçando-lhe cortar os dedos se continuasse com aquela pouca vergonha de tocar viola -coisa de mulher que se esfrega em homem, diziam.
Nunca aprendeu formalmente a viola, como nunca aprendeu a ler ou escrever -mas a sabedoria da vida era gigantesca. Casou cedo para sair de casa, mas o marido ignorante não aceitava suas liberdades. Largou o tal para cair na vida -tocando, compondo e trabalhando no que aparecesse. Virou da pinga, do fumo mascado, dos homens e da viola. Suas companhias se tornaram os músicos boêmios, as putas da roça.
Conheceu um paraguaio que tocava violino e foi-se embora com ele, até largá-lo também para trabalhar em puteiros do interior de São Paulo. Sua música só ganhava em poesia e verdade, de rústica e bela. Encontrou o marido Constantino, que tirou a mulher da zona, e juntos foram para o meio do mato, onde viveram escondidos por mais de 30 anos, a partir de fins da década de 50.
Quando reapareceu, com quase 70 anos, sua música estava no auge e não dava mais para esconder. Conta a história que um sobrinho gravou sua música em fita e mandou para os americanos, que de quatro ficaram por ela. E não era de se admirar: sua música exprimia, em uma só pessoa, o vigor de um guitarrista roqueiro, a inventividade de um jazzista, a crueza de um blueseiro.
Aos 70 anos, sua carreira começava. Gravou discos que venderam algumas dezenas de milhares, fez shows lotados, deu entrevistas, virou documentário.
Com seus olhos cansados e sua calma sobrenatural, a mulher que teve 11 filhos e sozinha pariu todos finalmente podia fazer sua música para ser reconhecida. O mundo descobriu o que já sabiam todos que a conheciam.
Foram pouco mais de dez anos de realização. Mas o tempo alcançou aquela mulher que encarava a vida de frente e, ali, no fim, já era difícil tocar. Ela se esforçava, queria levar sua música às pessoas que queriam ouvi-la. Porque, afinal, sua música era só sua. Em uma de suas últimas entrevistas, dizia: "Eu não sei "lê", não sei "escrevê", ninguém me ensinou. Eu componho e está gravado."
Se não sabia escrever, sabia tocar. Se não podia registrar, queria mostrar. Cada som novo que criava era só seu, até que outros pudessem ouvir. Felizardo de Constantino, que estava sempre ao lado, ouvindo. A nós, resta somente os discos gravados e a dor de imaginar quantas outras maravilhas estão, a partir de agora, perdidas, partidas com ela.


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