São Paulo, sábado, 30 de setembro de 2006

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crítica

Obra exibe o "neoclassicismo despedaçado"

OSCAR PILAGALLO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A trajetória de Napoleão Bonaparte tem relação intrínseca com a gênese do Brasil imperial. Suas vitórias determinaram a vinda da família real portuguesa; sua derrota, ao jogar no ostracismo o grupo de artistas que o serviam, viabilizou a organização da chamada Missão Francesa. O primeiro movimento daria os contornos políticos do Brasil no século 19; o segundo, influenciaria as artes plásticas nacionais.
Jean-Baptiste Debret, que registrara a expansão napoleônica em obras de encomenda, era o mais ilustre dos mais de 40 franceses que chegaram ao Rio de Janeiro em março de 1816. Nos 15 anos de permanência no Brasil, Debret retrataria a vida cotidiana da capital, tornando-se, com a publicação dos três volumes de "Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil", a principal referência iconográfica do período.
Essa reputação pode ser agora revisada com a edição do "Caderno de Viagem". A obra oferece complemento e contraponto ao trabalho mais conhecido do pintor.
Muitas imagens são apenas esboços, rascunhos de pinturas que, na década seguinte, Debret reuniria em "Viagem Pitoresca". Anotações dessa natureza têm interesse restrito, valem mais por revelar o processo de criação do artista. O que realmente chama a atenção são as imagens que, resultado das primeiras impressões, destoam das versões definitivas que o consagraram.
Da revisão de Debret emerge um artista com uma faceta menos acadêmica e convencional, tão típica da pintura neoclássica em que ele se formou. A intensidade dos desenhos surge de um "neoclassicismo despedaçado", na expressão justa de Julio Bandeira. Em parte, o resultado pode ser atribuído à própria técnica da aquarela, cuja rapidez e espontaneidade "carregam de autenticidade a imagem", observa Bandeira na apresentação.
O contraste entre as aquarelas do "Caderno" e as litogravuras de "Viagem Pitoresca" indica como o filtro do pintor por vezes suavizava a realidade. O francês veio ao Brasil para ajudar a formar uma geração de artistas, parte do projeto de d. João 6º de europeizar o Brasil. Deixou sua marca, mas levou outras consigo. A principal delas talvez tenha sido o impacto visual de uma luz que ele, perto dos 50 anos, desconhecia. "A luminescência bruta dos trópicos irá partir os sentidos de Debret", escreve Bandeira. É a partir da fusão desse elemento desagregador e da observação social que o artista se aproxima do romantismo. "Ao mostrar a nudez da escravatura, ele se aproximava da violência e da loucura de uma realidade que as elites prefeririam não ver", diz Bandeira.
"Caderno de Viagem", embora modesto em seu desígnio, eleva a estatura de Debret. Não só como artista que se redescobriu na maturidade, mas sobretudo como executor de um projeto etnográfico e sociológico que ajuda a visualizar e entender o Brasil do século 19.


OSCAR PILAGALLO é jornalista, editor da revista "EntreLivros" e autor de "A História do Brasil no Século 20" (Publifolha)

CADERNO DE VIAGEM     
Autor: Jean-Baptiste Debret
Editora: Sextante Artes
Quanto: R$ 29,90 (96 págs.)


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