São Paulo, terça-feira, 30 de outubro de 2007

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CECILIA GIANNETTI

Ladeira abaixo

Negligência é crime; a culpa pelo desabamento do túnel Rebouças não é da chuva, é da prefeitura, que sabia do risco

A VIDA se ajeita em qualquer lugar -utopia de quem não sofre de insônia. Problema para dormir, num balneário bonito desse? P****, mas se está tudo igual a antes... A rotina da zona sul de dentões arreganhados para o mar. Problema é só um impedimento ou outro no trânsito, complicado após a chuvarada que fez o caos no Rio e em São Paulo.
A normalidade. Tudo perfeito e igual a sempre, debaixo de um sol que, só com meio dia de brilho, já secou a água em ruas que até ontem estavam alagadas. Ano que vem, tem mais. Assim é tratada a coisa: desaba, constrói de novo e deixa rolar... morro abaixo. Platitude.
Agora aqui é calorão, e tanto mar que talvez o Chico Buarque já tenha voltado a traçar o calçadão do Leblon em caminhadas vigorosas -cena que é tão comum quanto a do turista tirando foto ao lado da estátua de Drummond em Copacabana. By the way, há duas semanas roubaram os óculos da estátua. Sabe-se lá como, material de bronze.
Um milagre atrás do outro e a vida se ajeita. Na praia, estão intactas as obras com que ganham um troco os escultores de rua, autodidatas. Retratam em areia mulheres seminuas, o Redentor e castelos.
No Aterro do Flamengo, o coroa que dá às crianças o aparato de fazer bolhas de sabão já retomou seu posto. Só no Rio, mesmo. Nego vive de castelos de areia e bolhas de sabão.
Afogados, eletrocutados e desabrigados passam ventando na folha do jornal de ontem. Parece que basta ter havido o registro jornalístico de seu azar. Solução, não tem, não.
Leite envenenado e aborto para os pobres que teimam em se reproduzir, entregando a prole -segundo opina incansavelmente um jornal de grande circulação no país- aos quadros de soldados do tráfico.
"Do meu ventre não sai bandido!", protesta leitora carioca, favelada, em carta contra as declarações do governador Sérgio Cabral, que afirmara que os abortos ajudariam a reduzir o crime no país. "Pega [o número de filhos por mãe] na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginal", disse o governador.
E o jornal voa, embaralha no vento, vai servir de cobertor para a turma que vive debaixo das marquises.
Crime é só o ato que envolve armas e tráfico? Quanto filho único, nascido em bairro "bom", não nos rouba do alto de um cargo importante, político ou não? O aborto é solução também para esse crime?
Negligência é crime. A culpa pelo desabamento do túnel Rebouças não é da chuva. A culpa é da prefeitura, que conhecia o risco e não informou a população, as operadoras de metrô, trens e barcas, nem a Polícia Militar. Quem passava lá quando o túnel caiu teve mais sorte do que os que estavam no desabamento no Complexo do Alemão.
O Rebouças não fez vítimas, embora tenha caído durante o "rush", em ponto crucial de ligação entre a zona norte a zona sul.
Não dá mais para contar só com milagres.


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