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CECILIA GIANNETTI
Ladeira abaixo
Negligência é crime; a culpa pelo desabamento do túnel Rebouças não é da chuva, é da prefeitura, que sabia do risco
A VIDA se ajeita em qualquer lugar -utopia de quem não sofre de insônia. Problema para
dormir, num balneário bonito desse? P****, mas se está tudo igual a
antes... A rotina da zona sul de dentões arreganhados para o mar. Problema é só um impedimento ou outro no trânsito, complicado após a
chuvarada que fez o caos no Rio e em
São Paulo.
A normalidade. Tudo perfeito e
igual a sempre, debaixo de um sol
que, só com meio dia de brilho, já secou a água em ruas que até ontem
estavam alagadas. Ano que vem, tem
mais. Assim é tratada a coisa: desaba, constrói de novo e deixa rolar...
morro abaixo. Platitude.
Agora aqui é calorão, e tanto mar
que talvez o Chico Buarque já tenha
voltado a traçar o calçadão do Leblon em caminhadas vigorosas -cena que é tão comum quanto a do turista tirando foto ao lado da estátua
de Drummond em Copacabana. By
the way, há duas semanas roubaram
os óculos da estátua. Sabe-se lá como, material de bronze.
Um milagre atrás do outro e a vida
se ajeita. Na praia, estão intactas as
obras com que ganham um troco os
escultores de rua, autodidatas. Retratam em areia mulheres seminuas, o Redentor e castelos.
No Aterro do Flamengo, o coroa
que dá às crianças o aparato de fazer
bolhas de sabão já retomou seu posto. Só no Rio, mesmo. Nego vive de
castelos de areia e bolhas de sabão.
Afogados, eletrocutados e desabrigados passam ventando na folha
do jornal de ontem. Parece que basta ter havido o registro jornalístico
de seu azar. Solução, não tem, não.
Leite envenenado e aborto para os
pobres que teimam em se reproduzir, entregando a prole -segundo
opina incansavelmente um jornal
de grande circulação no país- aos
quadros de soldados do tráfico.
"Do meu ventre não sai bandido!",
protesta leitora carioca, favelada,
em carta contra as declarações do
governador Sérgio Cabral, que afirmara que os abortos ajudariam a reduzir o crime no país. "Pega [o número de filhos por mãe] na Rocinha.
É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma
fábrica de produzir marginal", disse
o governador.
E o jornal voa, embaralha no vento, vai servir de cobertor para a turma que vive debaixo das marquises.
Crime é só o ato que envolve armas e tráfico? Quanto filho único,
nascido em bairro "bom", não nos
rouba do alto de um cargo importante, político ou não? O aborto é solução também para esse crime?
Negligência é crime. A culpa pelo
desabamento do túnel Rebouças
não é da chuva. A culpa é da prefeitura, que conhecia o risco e não informou a população, as operadoras de
metrô, trens e barcas, nem a Polícia
Militar. Quem passava lá quando o
túnel caiu teve mais sorte do que os
que estavam no desabamento no
Complexo do Alemão.
O Rebouças não fez vítimas, embora tenha caído durante o "rush",
em ponto crucial de ligação entre a
zona norte a zona sul.
Não dá mais para contar só com
milagres.
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