São Paulo, sábado, 30 de outubro de 2010

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CRÍTICA DOCUMENTÁRIO

Eduardo Coutinho inova ao retratar um dia de televisão

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

O que existe de mais fascinante em "Um Dia na Vida" é que Eduardo Coutinho reinventa-se a cada filme, mas nunca deixa de surpreender o espectador -como assinalou Eduardo Escorel no debate após a exibição única do filme, anteontem.
Reinventa-se sem nunca trair ou abandonar o próprio trajeto. "Um Dia na Vida" talvez seja o momento mais radical dessa busca de um cinema que negue o artista para fazer do filme um objeto em que o mundo se manifesta plenamente, com a mínima interferência do autor.
Sim, isso claramente remete a Roberto Rossellini e seu neorrealismo. Mas algo particulariza e atualiza esse projeto. Tratava-se de registrar 19 horas de televisão (os canais abertos apenas) para extrair 90 minutos de filme.
Jorge Furtado lembrou que esse registro de um dia de TV constitui para o cinema mais ou menos o que o "ready-made" de Duchamp significou para as artes plásticas: levados ao território estranho da tela de cinema, os programas de TV se apresentam como aberrações cotidianas a que a população é submetida.
Na mesma linha também seria possível argumentar que o título "Um Dia na Vida" tem um quê muito irônico. Trata-se em certa medida de produzir menos um "retrato do Brasil" do que um retrato da própria TV, que surge ali como um mundo autônomo, vagamente monstruoso, quase diabólico. Ou antes, isso é o que o filme produz, o que está lá. É o mundo-TV que se mostra a nós, tal qual. O diretor interfere o menos possível (queira ou não, ele seleciona, monta).
Pouco importa quem se reveza ao longo dos 90 minutos: aulas de língua, de culinária, pregadores, cirurgiões plásticos, vendedores do terror diário (como Wagner Montes), de milagres (o programa "Márcia").
Ao fim nos damos conta de que a TV é o mundo dos demiurgos: algo que não retrata o mundo ou o que somos senão indiretamente, pois mais ruidoso e mais infernal.
Não será injusto concordar com Coutinho quando diz que isso não é um filme, mas "uma coisa" tentando decifrar essa máquina de vendas que é a TV, mas também um filme que se põe fora do universo argentário que é o do cinema hoje. Ou, simplificando um pouco: não serão certos momentos de "Tropa de Elite 2" um espelho invertido do programa de TV de Wagner Montes? Ou ainda: não será o cinema um duplo?

UM DIA NA VIDA

AVALIAÇÃO ótimo


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