São Paulo, quinta-feira, 30 de novembro de 2006

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Artista gera complicação conceitual

Para diretor de museu com obras do ex-interno, "Mostra do Redescobrimento" prejudicou leitura de seus trabalhos

Ex-marinheiro, ex-ajudante geral e praticante de boxe, Bispo do Rosário morreu em colônia psiquiátrica; foi considerado esquizofrênico

DO ENVIADO ESPECIAL AO RIO

Apesar de estar livre de uma instituição psiquiátrica há 17 anos, desde sua própria morte, Arthur Bispo do Rosário ainda luta por libertar sua obra da rigidez dos conceitos psicanalíticos para que seja vista simplesmente como arte. Um dos motivos dessa leitura "equivocada", segundo Ricardo de Aquino, foi a "Mostra do Redescobrimento", em 2000, quando os trabalhos de Bispo foram exibidos no módulo "Imagens do Inconsciente".
"Se naquela época eu fosse diretor, não teria permitido que ele participasse da mostra, pois isso reduziu seu trabalho. Sua produção não foi vista como arte, mas apenas "imagens". Descobri depois que o próprio Mário Pedrosa, que inspirou a mostra, chamaria esse tipo de produção de "arte virgem", o que já seria mais adequado", conta Aquino.
De certa forma, essa complicação conceitual tem relação com a psiquiatra Nise da Silveira (1905-1999), que criou o Museu de Imagens do Inconsciente a partir dos ateliês de pintura e de modelagem da Seção de Terapêutica Ocupacional, em 1946, no Centro Psiquiátrico Pedro 2º, no Rio. "Ao que consta, a doutora Nise nunca conheceu o Bispo. O trabalho dela consistia em arte-terapia, já o Bispo não era tratado pela psiquiatria. Dizia que criava pois "era minha obrigação'", explica Aquino.
Arthur Bispo do Rosário nasceu em Japaratuba (Sergipe) e seguiu a carreira na Marinha de 1925 a 1933, tempo que também praticou boxe, sendo excluído da corporação por indisciplina e "incapacidade moral". No Rio, passou a fazer serviços gerais, tendo como patrão mais duradouro o advogado já morto Humberto Magalhães Leone, em Botafogo. Em dezembro de 1938, Bispo foi encaminhado para o Hospital Nacional dos Alienados, onde foi diagnosticado como esquizofrênico paranóide e transferido, no mês seguinte, para a Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá.
Nos próximos 20 anos, ele alternou temporadas na instituição com trabalhos esparsos fora dela, a mais duradoura na clínica pediátrica Amiu, em Botafogo, onde, voluntariamente, isolado num quartinho do sótão, produziu boa parte de sua obra. Em 1964, com dois caminhões de mudança, ele retornou à Colônia Juliano Moreira, para nunca mais sair. "Acredito que ele se internou para criar e ter condições de preservar sua obra", diz Aquino.
Com tal percurso, o que faz Bispo ser considerado artista contemporâneo? "Hoje, tem sido uma "tendência" fazer crítica institucional. Ora, Bispo foi institucionalizado duas vezes: pela instituição psiquiátrica e pela instituição artística. É, não obstante, um criador que fala de dentro da instituição e trabalhou em paralelo com um Duchamp. Bispo é um artista deleuzeano que inventou uma saúde para si próprio, resistindo à asfixia da clausura", diz à Folha a curadora da 27ª Bienal de São Paulo, Lisette Lagnado.
Numa sala embaixo onde funciona o Museu Arthur Bispo do Rosário, que tem uma programação de arte contemporânea e não apresenta apenas obras do homenageado da instituição, vive Clóvis, outro artista com características próximas às de Bispo, pois realiza seus trabalhos com materiais reciclados, agrupando-os de forma obsessiva.
Em seu quarto, por exemplo, uma televisão está ligada, mas ela serve mais como um rádio, já que sua tela está pintada. Segundo Aquino, Clóvis -que participou junto com Lívia Flores da 26ª Bienal de São Paulo, chegou a ser convidado a tomar parte da Documenta de Kassel, em 2007. Assim, como Bispo, que evitava expor suas obras em público, Clóvis, fugindo das restrições institucionais, apenas comenta: "Isso é trama deles aí, eu não sei de nada". (FCy)


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