São Paulo, quinta-feira, 30 de novembro de 2006

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NINA HORTA

As jabuticabas da memória


Uma fruta preta que começa na raiz, já cresce no galho, grudada, cor de luto, mas brilhante de vida

ESTAVA DEITADA na banheira de água quente, relaxando e lendo a revista "Piauí", mas bem angustiada com a história do banco Pactual, uma reportagem detalhada, boa, minuciosa, mas triste.
De repente meu olho se desviou para uma anunciozinho ao lado, que não entendi direito: "Aluguel de pé de jabuticaba. Cobra-se uma taxa por cada árvore e você fica o tempo que quiser. Pode-se comer as frutas debaixo do pé ou levar para casa. Almira Morais. Sítio Palmar. Rua Raimundo Francisco Ferreira, 3003 - Pompéia. Sabará -MG. Tel. 0/xx/31/3671-6112. Época da fruta: outubro e novembro".
Senti uma coisa esquisita, como se tivesse sido levada para trás no tempo, eu e Proust. Ou foi um fenômeno de "wishful thinking" - quer dizer, quer dizer o quê? Que você quer acreditar naquilo que está pensando, um pensamento que brota do seu desejo. E não li o anúncio assim, de uma enfiada. De palavra em palavra, e falando sozinha. É o mesmo lugar e a mesma mulher dos anos 70, do Imirim! Almira, é, acho que era Almira. Mas na Pompéia? Talvez.
E ela aluga os pés, como naqueles tempos... Não, não era. A revista me tirara do Pactual para me colocar no carro, indo chupar jabuticaba com a família. A mulher que nos recebia era de meia-idade, branca com sardas, arruivada, brava, sempre a mesma, mão-de-ferro, tomando conta de centenas de árvores plantadas em aléias, uma atrás da outra, todas carregadas, pretas de fruta.
Os anos 70 já não eram anos de jabuticaba no pé. Nem ver. O tal sítio, uma aberração, tinha sido deixado para uns irmãos que entraram em litígio por uns anos por causa da herança, e uma das noras se propusera a tirar um lucrinho das jabuticabeiras carregadas.
Acho que pouca gente sabia daquilo. Só me lembro que chegávamos e o riso de minha mãe era mudo, mas tomava a alma toda, virava menina. Estava no seu hábitat. No tempo miúdo em que fora feliz na infância. Órfã de pai, morava com a avó em Belo Horizonte, numa casa sisuda, com terraço alto, cristaleira, e até uma velha escrava de varizes e chinelo xadrez.
E a duas horas dali ficavam as férias, a mãe professora, os primos felizes, a comida gostosa, o carinho da casa, a cozinha cortada pelo riacho esplêndido, as brincadeiras de esconde-esconde e...as jabuticabas.
Uma fruta preta (só jabuticaba mesmo, no mundo), que começa na raiz, uma fome de nascer, já cresce no galho, grudada, cor de luto, mas brilhante de vida, talvez guarde as tristezazinhas de menina, quiçá os grandes pecados, mas sua carapinha transforma tudo numa alegria negra, doce, funda.
Na tal chácara, podíamos chupar e chupar as frutas no pé, no começo atabalhoadamente, depois com mais discernimento, escolhendo com cuidado as mais gorduchas, ploct, tloc, tloc, nunca uma vespa...
Chegava uma hora que cansava. Fartava, mas, milagre dos milagres, a digestão de jabuticaba se faz em 15 minutos e era começar tudo de novo, um prazer renovado, sentir a polpa branca e macia, o caroço cuspido, mas não era bem isso, e sim a sensação de fartura, de bem-bom.
Jabuticaba é para comer de balaio, balaio forrado e coberto de folhas, as frutas sem lavar senão azedam, viajam mal as benditas, e vai-se indo devagar, numa distração, uma por uma na sua pretice, até que restem no fundo somente as pequenas, que depois de um certo tempo e séria consideração são comidas também.
Jabuticabas são para se comer das árvores, como no anúncio da "Piauí". (Estes primeiros anúncios são inventados, esperando pelos verdadeiros, mas tenho cá minhas dúvidas que um dia consigam outros tão preciosos na sua doçura preta, puro ouro negro escorrendo da memória.)

ninahorta@uol.com.br


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