|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
NINA HORTA
As jabuticabas da memória
Uma fruta preta que começa na raiz, já cresce no galho, grudada, cor de luto, mas brilhante de vida
|
ESTAVA DEITADA na banheira
de água quente, relaxando e
lendo a revista "Piauí", mas
bem angustiada com a história do
banco Pactual, uma reportagem
detalhada, boa, minuciosa, mas
triste.
De repente meu olho se desviou
para uma anunciozinho ao lado,
que não entendi direito: "Aluguel
de pé de jabuticaba. Cobra-se uma
taxa por cada árvore e você fica o
tempo que quiser. Pode-se comer
as frutas debaixo do pé ou levar para casa. Almira Morais. Sítio Palmar. Rua Raimundo Francisco
Ferreira, 3003 - Pompéia. Sabará
-MG. Tel. 0/xx/31/3671-6112. Época da fruta: outubro e novembro".
Senti uma coisa esquisita, como
se tivesse sido levada para trás no
tempo, eu e Proust. Ou foi um fenômeno de "wishful thinking" -
quer dizer, quer dizer o quê? Que
você quer acreditar naquilo que está pensando, um pensamento que
brota do seu desejo. E não li o
anúncio assim, de uma enfiada. De
palavra em palavra, e falando sozinha. É o mesmo lugar e a mesma
mulher dos anos 70, do Imirim! Almira, é, acho que era Almira. Mas
na Pompéia? Talvez.
E ela aluga os
pés, como naqueles tempos... Não,
não era. A revista me tirara do Pactual para me colocar no carro, indo
chupar jabuticaba com a família. A
mulher que nos recebia era de
meia-idade, branca com sardas, arruivada, brava, sempre a mesma,
mão-de-ferro, tomando conta de
centenas de árvores plantadas em
aléias, uma atrás da outra, todas
carregadas, pretas de fruta.
Os anos 70 já não eram anos de
jabuticaba no pé. Nem ver. O tal sítio, uma aberração, tinha sido deixado para uns irmãos que entraram em litígio por uns anos por
causa da herança, e uma das noras
se propusera a tirar um lucrinho
das jabuticabeiras carregadas.
Acho que pouca gente sabia daquilo. Só me lembro que chegávamos e
o riso de minha mãe era mudo, mas
tomava a alma toda, virava menina.
Estava no seu hábitat. No tempo
miúdo em que fora feliz na infância. Órfã de pai, morava com a avó
em Belo Horizonte, numa casa sisuda, com terraço alto, cristaleira,
e até uma velha escrava de varizes
e chinelo xadrez.
E a duas horas dali ficavam as férias, a mãe professora, os primos
felizes, a comida gostosa, o carinho
da casa, a cozinha cortada pelo riacho esplêndido, as brincadeiras de
esconde-esconde e...as jabuticabas.
Uma fruta preta (só jabuticaba
mesmo, no mundo), que começa
na raiz, uma fome de nascer, já
cresce no galho, grudada, cor de luto, mas brilhante de vida, talvez
guarde as tristezazinhas de menina, quiçá os grandes pecados, mas
sua carapinha transforma tudo numa alegria negra, doce, funda.
Na tal chácara, podíamos chupar
e chupar as frutas no pé, no começo atabalhoadamente, depois com
mais discernimento, escolhendo
com cuidado as mais gorduchas,
ploct, tloc, tloc, nunca uma vespa...
Chegava uma hora que cansava.
Fartava, mas, milagre dos milagres,
a digestão de jabuticaba se faz em
15 minutos e era começar tudo de
novo, um prazer renovado, sentir a
polpa branca e macia, o caroço cuspido, mas não era bem isso, e sim a
sensação de fartura, de bem-bom.
Jabuticaba é para comer de balaio, balaio forrado e coberto de folhas, as frutas sem lavar senão azedam, viajam mal as benditas, e vai-se indo devagar, numa distração,
uma por uma na sua pretice, até
que restem no fundo somente as
pequenas, que depois de um certo
tempo e séria consideração são comidas também.
Jabuticabas são para se comer
das árvores, como no anúncio da
"Piauí". (Estes primeiros anúncios
são inventados, esperando pelos
verdadeiros, mas tenho cá minhas
dúvidas que um dia consigam outros tão preciosos na sua doçura
preta, puro ouro negro escorrendo
da memória.)
ninahorta@uol.com.br
Texto Anterior: Bom e barato: La Cabaña é boa opção argentina Próximo Texto: Achados de botequim Índice
|