São Paulo, sábado, 30 de dezembro de 2006

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Crítica/romance

Edição relembra 30 anos de "A Hora da Estrela"

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Quando Rodrigo S.M., o narrador de "A Hora da Estrela" (cuja nova edição comemora os 30 anos da publicação do livro), confessa na dedicatória do autor que, na verdade, ele é Clarice Lispector, está mentindo. Como confiar na palavra de um narrador ficcional, ainda por cima em primeira pessoa? Na verdade, Clarice Lispector é só a autora do livro; aqui, como objeto da confissão do narrador, ela é muito mais do que isso. É uma personagem criada por ele, que, como Clarice gostava de fazer, fica, a partir desse momento, observando tudo o que acontece pelas entrelinhas do texto.
"Mas já que se há de escrever, que pelo menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas." E é de lá, das entrelinhas da narrativa, que Clarice fica observando, escondida, de- senrolar-se o fio da não-história de Macabéa. É também lá que gostaríamos de nos enfiar, nós, leitores, em quem a microvida de Macabéa provoca vergonha, raiva e culpa. Menor que a "vida besta" de Carlos Drummond de Andrade, menor que a travessia de Severino, de João Cabral de Melo Neto, ou de Fabiano, de Graciliano Ramos, que ainda vão para algum lugar, a vida de Macabéa não tem a menor importância. "Se Macabéa tivesse a tolice de se perguntar "quem sou eu?", cairia estatelada e em cheio no chão".
Alagoana de 19 anos, péssima datilógrafa, que erra as letras e suja o papel, pinta de vermelho carmim as unhas roídas até o bagaço, gosta de Coca-Cola e ouve a Rádio Relógio, vai parar no Rio de Janeiro não se sabe bem como. [ ] E é lá que, de relance, o narrador a avista e ela, de tão ninguém que é, não lhe sai mais da cabeça. E sua "nadidade" é tanta que toda nossa substância de indivíduos plenos de significados fica reduzida à compressão das entrelinhas.
Lá, apertados, observamos perplexos, com repúdio e espanto, Macabéa perguntar:
"Você sabe se a gente pode comprar um buraco?"; "Que quer dizer cultura?"; "Disseram que se devia ter alegria de viver. Então eu tenho". E o que fazemos nós, com essas palavras tão inteiras, tão desabituadas de seu uso banal que é como se as ouvíssemos pela primeira vez? Porque na boca de Macabéa, heroína sem heroísmo, as palavras "cultura", "buraco" e "alegria" são como coisas de pegar e comer. E assim nós as conhecemos de novo. Mas nada disso, nem nossa culpa nem nosso espanto, faz algum bem à personagem. Nada a tira de sua condição. Talvez somente a hora da estrela lhe possibilite alguma desobediência ao destino de pobre do qual sua vida nunca lhe permitiu escapar.
Agora, com a nova edição, apesar de desnecessariamente refinada -estojo prateado, gravação do texto integral por Pedro Paulo Rangel e a dedicatória lida por Maria Bethânia- quem sabe nós, a quem a vida ainda permite um mínimo de desobediência, possamos encontrar, na hora de Macabéa, a nossa mínima hora e então sairmos devagarinho do esconderijo das entrelinhas.


A HORA DA ESTRELA     
Autor: Clarice Lispector
Editora: Rocco
Quanto: R$ 45 (120 págs.)


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