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Crítica/romance
Edição relembra 30 anos de "A Hora da Estrela"
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Quando Rodrigo S.M., o
narrador de "A Hora
da Estrela" (cuja nova
edição comemora os 30 anos da
publicação do livro), confessa
na dedicatória do autor que, na
verdade, ele é Clarice Lispector, está mentindo. Como confiar na palavra de um narrador
ficcional, ainda por cima em
primeira pessoa? Na verdade,
Clarice Lispector é só a autora
do livro; aqui, como objeto da
confissão do narrador, ela é
muito mais do que isso. É uma
personagem criada por ele, que,
como Clarice gostava de fazer,
fica, a partir desse momento,
observando tudo o que acontece pelas entrelinhas do texto.
"Mas já que se há de escrever,
que pelo menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas." E é de lá, das entrelinhas
da narrativa, que Clarice fica
observando, escondida, de-
senrolar-se o fio da não-história de Macabéa. É também lá
que gostaríamos de nos enfiar,
nós, leitores, em quem a microvida de Macabéa provoca vergonha, raiva e culpa.
Menor que a "vida besta" de
Carlos Drummond de Andrade,
menor que a travessia de Severino, de João Cabral de Melo
Neto, ou de Fabiano, de Graciliano Ramos, que ainda vão para algum lugar, a vida de Macabéa não tem a menor importância. "Se Macabéa tivesse a
tolice de se perguntar "quem
sou eu?", cairia estatelada e em
cheio no chão".
Alagoana de 19 anos, péssima
datilógrafa, que erra as letras e
suja o papel, pinta de vermelho
carmim as unhas roídas até o
bagaço, gosta de Coca-Cola e
ouve a Rádio Relógio, vai parar
no Rio de Janeiro não se sabe
bem como. [ ] E é lá que, de relance, o narrador a avista e ela, de
tão ninguém que é, não lhe sai
mais da cabeça. E sua "nadidade" é tanta que toda nossa substância de indivíduos plenos de
significados fica reduzida à
compressão das entrelinhas.
Lá, apertados, observamos
perplexos, com repúdio e espanto, Macabéa perguntar:
"Você sabe se a gente pode
comprar um buraco?"; "Que
quer dizer cultura?"; "Disseram que se devia ter alegria de
viver. Então eu tenho". E o que
fazemos nós, com essas palavras tão inteiras, tão desabituadas de seu uso banal que é como
se as ouvíssemos pela primeira
vez? Porque na boca de Macabéa, heroína sem heroísmo, as
palavras "cultura", "buraco" e
"alegria" são como coisas de pegar e comer. E assim nós as conhecemos de novo.
Mas nada disso, nem nossa
culpa nem nosso espanto, faz
algum bem à personagem. Nada a tira de sua condição. Talvez somente a hora da estrela
lhe possibilite alguma desobediência ao destino de pobre do
qual sua vida nunca lhe permitiu escapar.
Agora, com a nova edição,
apesar de desnecessariamente
refinada -estojo prateado, gravação do texto integral por Pedro Paulo Rangel e a dedicatória lida por Maria Bethânia-
quem sabe nós, a quem a vida
ainda permite um mínimo de
desobediência, possamos encontrar, na hora de Macabéa, a
nossa mínima hora e então
sairmos devagarinho do esconderijo das entrelinhas.
A HORA DA ESTRELA
Autor: Clarice Lispector
Editora: Rocco
Quanto: R$ 45 (120 págs.)
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