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NINA HORTA
Um rito de passagem
No fim, o tão respeitado pai da noiva está de peruca dançando com o convidado importante
POR FALAR em bebida, ela é como um rito de passagem, especialmente para os meninos.
Antigamente, tomava-se água inglesa, que tinha o maior gosto de álcool,
para abrir o apetite, um pouquinho
de vinho nas refeições para acompanhar a comida e, de quando em vez,
um Porto na gemada ou quando havia visitas. Mas entendia-se bem que
a bebida alcoólica tinha a ver com as
refeições e com as comemorações.
Tenho visto em muitas festas de
15 anos e de bar mitzvah a cara dos
meninos se aproximando do bar dos
adultos como se o bartender fosse o
próprio Dionísio ou Baco. Principalmente os menorezinhos, magrelos,
estudiosos, de óculos, babam seu desejo do proibido, do ótimo, do êxtase, do desconhecido. Se o Baco do
bar cair na esparrela e entregar a bebida aos meninos, acreditando que é
para os pais, pode contar que, em
uma hora, vai haver uma variedade
de nerds deitados em estertores no
corredor do banheiro, vomitando as
tripas. Talvez isso os cure dos excessos, drasticamente.
Um promotor de festas me contou
que, diante do assédio das crianças
para beber, encheu várias garrafas
de vodca com água supergelada e
uma colher de vodca, em volta da
tampa, melando. E serviu aos meninos o quanto quiseram. Eles beberam até mais não poder e, pasmem,
foram encontrados escornados no
corredor do mesmo jeito.
Geralmente, num casamento, ou
mesmo festa empresarial, quando as
pessoas chegam, sou tomada de pânico. Todos desapontados, sem saber onde botar as mãos, as mulheres
muito arrumadas se equilibrando
nos saltos, os homens querendo
abrir o colarinho com cara de como-foi-que-vim-parar-aqui. Penso que
vai ser um velório, todo mundo de
cara amarrada, que pessoal mais
sem graça.
De repente, sem que quase se perceba, começa um barulho de mosca,
um zunir, um burburinho, que vai se
elevando devagar, discreto. O álcool
está desanuviando as cabeças, os homens já começaram a enxergar as
coisas através de um véu, as mulheres vão ficando bonitas, os homens
bem mais interessantes, e, no fim, o
tão respeitado patrão ou o pai da
noiva está de peruca loira dançando
com o convidado mais importante, o
ministro das Finanças, que enverga
um colar de néon de várias voltas.
Podemos ir embora. A comilança
tratará de equilibrar a bebida e tudo
sairá nos trinques.
As histórias da proibição são interessantes para ver até onde pode
chegar a sede dos homens. (O crime
diminuiu muito quando a Lei Seca
acabou.) A editora DBA traduziu as
melhores histórias da "Gourmet",
mas ainda não publicou.
Uma delas é de um ingênuo garoto
que foi contratado como violinista
de um navio que saía do Havre, com
canadenses e espanhóis (que, ao serem questionados, diziam que estavam a caminho da Espanha para
morrer, pois na Espanha havia lugares ótimos para se morrer.)
Moral da história, aquela pequena
orquestra, além de tocar e desafinar
muito, tinha como objetivo diluir a
bebida, escamotear garrafas, misturar sabores, para a chegada triunfante em Nova York, quando o menino,
que nem inglês sabia, foi encarregado de chamar por um telefone público todos os magnatas, avisando em
código a chegada do navio.
E podem imaginar a orgia que se
dava nessas chegadas. Financistas,
empreendedores, altos comerciantes, políticos, soltando o dinheiro
por mais uma dose, descabelados,
babando, dormindo pelos cantos,
em fila na porta dos banheiros, sede
afinal satisfeita. O rapaz fez três
destas viagens que lhe permitiram
cursar a faculdade, mas jamais se
esqueceu do grande e misterioso poder do álcool.
Qualquer dia desses podemos estudar isso nos Provérbios e em São
Mateus, porque não há literatura
ou religião do mundo que não fale
no assunto.
ninahorta@uol.com.br
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