São Paulo, quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

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NINA HORTA

Um rito de passagem

No fim, o tão respeitado pai da noiva está de peruca dançando com o convidado importante

POR FALAR em bebida, ela é como um rito de passagem, especialmente para os meninos. Antigamente, tomava-se água inglesa, que tinha o maior gosto de álcool, para abrir o apetite, um pouquinho de vinho nas refeições para acompanhar a comida e, de quando em vez, um Porto na gemada ou quando havia visitas. Mas entendia-se bem que a bebida alcoólica tinha a ver com as refeições e com as comemorações.
Tenho visto em muitas festas de 15 anos e de bar mitzvah a cara dos meninos se aproximando do bar dos adultos como se o bartender fosse o próprio Dionísio ou Baco. Principalmente os menorezinhos, magrelos, estudiosos, de óculos, babam seu desejo do proibido, do ótimo, do êxtase, do desconhecido. Se o Baco do bar cair na esparrela e entregar a bebida aos meninos, acreditando que é para os pais, pode contar que, em uma hora, vai haver uma variedade de nerds deitados em estertores no corredor do banheiro, vomitando as tripas. Talvez isso os cure dos excessos, drasticamente.
Um promotor de festas me contou que, diante do assédio das crianças para beber, encheu várias garrafas de vodca com água supergelada e uma colher de vodca, em volta da tampa, melando. E serviu aos meninos o quanto quiseram. Eles beberam até mais não poder e, pasmem, foram encontrados escornados no corredor do mesmo jeito.
Geralmente, num casamento, ou mesmo festa empresarial, quando as pessoas chegam, sou tomada de pânico. Todos desapontados, sem saber onde botar as mãos, as mulheres muito arrumadas se equilibrando nos saltos, os homens querendo abrir o colarinho com cara de como-foi-que-vim-parar-aqui. Penso que vai ser um velório, todo mundo de cara amarrada, que pessoal mais sem graça.
De repente, sem que quase se perceba, começa um barulho de mosca, um zunir, um burburinho, que vai se elevando devagar, discreto. O álcool está desanuviando as cabeças, os homens já começaram a enxergar as coisas através de um véu, as mulheres vão ficando bonitas, os homens bem mais interessantes, e, no fim, o tão respeitado patrão ou o pai da noiva está de peruca loira dançando com o convidado mais importante, o ministro das Finanças, que enverga um colar de néon de várias voltas.
Podemos ir embora. A comilança tratará de equilibrar a bebida e tudo sairá nos trinques.
As histórias da proibição são interessantes para ver até onde pode chegar a sede dos homens. (O crime diminuiu muito quando a Lei Seca acabou.) A editora DBA traduziu as melhores histórias da "Gourmet", mas ainda não publicou.
Uma delas é de um ingênuo garoto que foi contratado como violinista de um navio que saía do Havre, com canadenses e espanhóis (que, ao serem questionados, diziam que estavam a caminho da Espanha para morrer, pois na Espanha havia lugares ótimos para se morrer.)
Moral da história, aquela pequena orquestra, além de tocar e desafinar muito, tinha como objetivo diluir a bebida, escamotear garrafas, misturar sabores, para a chegada triunfante em Nova York, quando o menino, que nem inglês sabia, foi encarregado de chamar por um telefone público todos os magnatas, avisando em código a chegada do navio.
E podem imaginar a orgia que se dava nessas chegadas. Financistas, empreendedores, altos comerciantes, políticos, soltando o dinheiro por mais uma dose, descabelados, babando, dormindo pelos cantos, em fila na porta dos banheiros, sede afinal satisfeita. O rapaz fez três destas viagens que lhe permitiram cursar a faculdade, mas jamais se esqueceu do grande e misterioso poder do álcool.
Qualquer dia desses podemos estudar isso nos Provérbios e em São Mateus, porque não há literatura ou religião do mundo que não fale no assunto.


ninahorta@uol.com.br

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