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São Paulo, sábado, 31 de maio de 2003

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DRAUZIO VARELLA

A longa vida dos neurônios

É muito provável que nossos neurônios não morram com a facilidade que imaginávamos.
A teoria de que perdemos neurônios a cada dia que passa surgiu a partir de um trabalho de H. Brody, publicado nos Estados Unidos em 1955. O autor fez cortes histológicos dos cérebros de indivíduos cujas idades variavam entre alguns meses e 95 anos, corou-os com uma substância que torna os neurônios visíveis e contou-os numericamente. Encontrou perda significativa dessas células com a idade, até mesmo em áreas essenciais para manter a capacidade de planejamento e em centros que controlam a percepção de estímulos sensoriais.
Estudos posteriores, conduzidos com metodologia menos precária, aparentemente confirmaram essa observação.
Essas evidências justificavam a deterioração neurológica progressiva da maioria das enfermidades associadas à senectude, mas nunca explicou o caso dos idosos lúcidos. A perda diária de neurônios afetou a qualidade dos contos de Borges? A dos quadros de Matisse?
A teoria da morte progressiva de neurônios começou a ser contestada a partir da publicação dos trabalhos de H. Haug, da Universidade de Lübeck, em 1984. Num estudo com 120 cérebros humanos, o autor fez uma observação singela: o tecido cerebral encolhe quando cortado para exame no microscópio. Como o cérebro jovem é mais elástico, a concentração de neurônios por centímetro quadrado fica maior, da mesma forma que dois alfinetes num elástico esticado se aproximarão se o deixarmos contrair.
A partir de então, a revisão rigorosa dos métodos utilizados pelos pesquisadores que estabeleceram o dogma da morte neuronal inexorável deixou claro que ele havia sido estabelecido a partir de trabalhos com problemas técnicos capazes de comprometer as conclusões finais.
Com advento de técnicas tridimensionais, muito mais precisas para a contagem de neurônios, diversos pesquisadores demonstraram que, salvo em condições patológicas, o envelhecimento não está obrigatoriamente associado à morte progressiva de neurônios.
Como explicar, então, a queixa de perda de memória tão frequente nas mulheres e nos homens de idade?
Embora não pareça haver perda significativa de neurônios nos circuitos do hipocampo (estrutura situada na parte central do cérebro, crucial para a estruturação da memória), com o passar dos anos podem surgir deficiências funcionais nessa circuitaria. Testes de aprendizado em roedores, primatas e seres humanos sugerem existir redução na capacidade de reter informações novas à medida que o animal envelhece, conclusão coerente com a dificuldade dos mais velhos para lembrar fatos recentes.
Descartados os quadros demenciais, a doença de Alzheimer e outras patologias que afetam a cognição, é provável que as queixas de perda de memória associadas à idade sejam consequência de um longo processo multifatorial:
1) O mecanismo de aprendizado envolve circuitos de neurônios que se conectam a partir de diferentes centros cerebrais. Neurônios não estão ligados uns aos outros como fios elétricos: suas terminações não se tocam, ao contrário, deixam um espaço livre entre elas, chamado sinapse. Na sinapse são liberados íons e os mediadores químicos necessários para a condução do estímulo nervoso, que pode correr em velocidades vertiginosas (medidas em milissegundos).
A preservação desse mecanismo implica não apenas a estimulação adequada nas fases de desenvolvimento como o uso continuado pelo resto da vida. O ato repetitivo explica como o ator Paulo Autran repete páginas de texto no palco, enquanto pessoas de 30 anos não conseguem guardar um simples recado telefônico.
2) A impressão de perda de memória muitas vezes está ligada à quantidade de "bites" armazenados. Calcula-se que o número de informações acumuladas no cérebro de um homem de 50 anos seja pelo menos três vezes maior do que o contido no de um rapaz de 25.
3) Mesmo sem ocorrer morte de neurônios, a memória pode deteriorar-se em virtude de outras alterações neurológicas.
4) O decréscimo da produção de estrógeno, característico da menopausa, interfere em eventos neurológicos que podem conduzir a deficiências cognitivas. É provável que no homem exista fenômeno semelhante.
O dogma de que milhares de nossos neurônios morrem todos os dias caiu em descrédito na neurociência atual. Se essas células não desaparecem em massa, como pensávamos, a deterioração progressiva da inteligência e da motricidade talvez não seja obrigatória na velhice.
A circuitaria envolvida no mecanismo de memorização tem sido mapeada com rigor. As moléculas responsáveis pela recepção e pela transmissão de sinais entre neurônios começam a ser conhecidas e manipuladas; os genes que as codificam também. Em alguns anos, muitas das deficiências cognitivas tradicionalmente associadas à senescência poderão ser prevenidas, tratadas com eficácia ou adiadas por dez ou 20 anos. Quem sabe?


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