São Paulo, segunda-feira, 31 de maio de 2004

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CRÍTICA

Guerra contra o convencional

GUILHERME WERNECK
EDITOR-ADJUNTO DA ILUSTRADA

Ouvidos acostumados à estagnada criatividade da eletrônica feita apenas para as pistas de dança devem passar longe dos discos do Matmos, principalmente de "The Civil War".
Isso porque o diálogo musical do Matmos está a léguas -ou décadas- de distância do transe hedonista que caracteriza a eletrônica festiva.
Antes, a dupla faz referência à iconoclastia dos pioneiros da eletrônica, principalmente aqueles que improvisavam com sintetizadores, computadores e instrumentos preparados, como o coletivo dos anos 60 Musica Elettronica Viva, que tinha em suas fileiras arquitetos sonoros como Alvin Curran e Frederic Rzewski.
O Matmos incorpora também o gosto pelo uso de não-músicos, bandeira levantada por compositores modernos como John Cage (1912-1992) e Cornelius Cardrew (1936-1981). E, desde os seus primeiros trabalhos, explora de maneira musical o som dos objetos, coisa que Cardrew já fazia com o AMM, grupo de improvisação no qual o som de um ventilador amplificado podia complementar o de um saxofone sem problemas.
Isso não significa que a dupla simplesmente reedita a música de vanguarda dos anos 60 no tiroteio pós-moderno dos anos 2000. Se, de um lado, há encontros com esses pioneiros no gosto pelo método e pelo conceito, por outro também há o diálogo com o que se produz em eletrônica hoje, inclusive a música de pista menos esquemática, feita por Kid 606 e Matthew Herbert, por exemplo.
"The Civil War" é um disco que alarga os horizontes do Matmos ao incorporar uma série de músicos, de Mark Lightcap (Acetone) a David Grubbs (Gastr del Sol).
Num exercício anacrônico, Martin C. Schmidt e Drew Daniel se voltaram para o imaginário da Guerra Civil americana para criar canções que espelhassem um espírito de cisão.
Musicalmente, isso se traduziu na incorporação da música folclórica e na promoção de uma batalha entre as modulações e os ruídos eletrônicos e o uso de instrumentos como guitarras, piano, tuba e, o mais fantástico de todos, um hurdi gurdy (primo inglês do realejo) do século 14.
"Reconstruction" é uma faixa-chave. Começa com variações rítmicas em diferentes freqüências eletrônicas, incorpora a improvisação coletiva e desemboca num triste tema de faroeste liderado pelas lamúrias da guitarra.
Na seqüência, "Y.T.T.E." chupa a batida pulsante de "Lust for Life", de Iggy Pop, para subverter uma jam session quase country.
A maior ousadia do disco, entretanto, é a versão anárquica da marcha "The Stars and Stripes Forever", do ícone da música americana John Philip Sousa.
Entre mortos e feridos, salva-se o ouvinte, que tem a seu alcance um disco complexo, desafiador, mas musical e acessível.


The Civil War
    
Artista: Matmos
Lançamento: Matador (importado)
Quanto: R$ 60, em média (em www.cdpoint.com.br)



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