São Paulo, terça-feira, 31 de julho de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Memória

Diretor formou 'santíssima trindade'

Bergman ganhou Oscar de filme estrangeiro com "Fanny & Alexandre" em 1982 e Urso de Ouro com "Morangos Silvestres'

SÉRGIO RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA

Ao lado do diretor japonês Akira Kurosawa (1910-1998) e do italiano Federico Fellini (1920-1993), Ingmar Bergman formou uma espécie de "santíssima trindade" do cinema de autor no pós-guerra.
A imprensa e a crítica internacional os instalou nesse Olimpo com base na capacidade que seus filmes demonstravam de conciliar uma perspectiva singular do mundo com o trânsito em uma faixa de mercado mais ampla do que a oferecida por festivais e salas alternativas.
Não parece acidental que os três tenham sido generosamente agraciados com o Oscar de filme estrangeiro e com indicações nas categorias de direção e roteiro.
A indústria norte-americana, em sua maneira peculiar de hierarquizar obras e profissionais, reconhecia dessa forma um grau de excelência a ser homenageado.

Cinema de qualidade
Era o tal "cinema de qualidade", nomenclatura que se refere, nesse contexto, a estruturas narrativas originais (ou que parecessem originais a parcela do público) empregadas para explorar temas "nobres" em filmes ao alcance de platéias adultas que não fizessem parte da categoria de ratos de cineclubes e cinematecas.
Revelador desse prestígio, em relação a Bergman e a Fellini, é o comportamento do cineasta norte-americano Woody Allen ao mimetizá-los em alguns de seus filmes que já vão se tornando "clássicos", como "Interiores" (1978) e "Memórias" (1980), entre outros.
E, em relação a Kurosawa, os esforços de George Lucas, Martin Scorsese e Francis Coppola para que seus derradeiros longas fossem produzidos e distribuídos.
Certa vez, Allen admitiu que gostaria mesmo era de fazer filmes como os de Bergman - que, em resposta que talvez significasse mais do que apenas retribuição bem-humorada à gentileza do colega, disse que adoraria ser capaz de fazer filmes como os de Allen.
Dois livros autobiográficos permitem que se investigue a trajetória e o pensamento de Bergman em busca de respostas para esse suposto desconforto entre artista e sua obra: "Lanterna Mágica" (1987) e "Imagens" (1990).
"Toda a educação que eu e meus irmãos recebemos baseava-se praticamente em conceitos relacionados com pecado, confissão, castigo, perdão, indulgência, conceitos comuns nas relações entre pais e filhos, e que incluíam a idéia de Deus", lembra o cineasta, no primeiro livro, em sua franca reconstituição da infância.

"Imagens"
No final, depois de recapitular os principais momentos da carreira no teatro, no cinema e na televisão, menciona a descoberta de notas escritas pela sua mãe na conturbada semana em que nasceu, e empresta uma frase dela para encerrar as memórias: "A vida é assim mesmo: cada um tem de se arranjar o melhor que puder".
Em "Imagens", que reúne comentários sobre seus principais filmes, há uma epígrafe devastadora, retirada de uma anotação de agenda de trabalho de 1964:
"Minha peça começa com o ator que desce à platéia, estrangula um crítico e, de um livrinho preto, lê todas as humilhações que sofreu e de que tomou nota. Depois vomita sobre o público. Em seguida, afasta-se e dá um tiro na cabeça."
Imagine isso como um filme de Woody Allen.


Texto Anterior: Análise: Bergman filmava alma de personagens
Próximo Texto: Repercussão
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.