São Paulo, Sábado, 31 de Julho de 1999
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LIVRO - LANÇAMENTOS
Esplendor de "Timbuktu" está só nos intervalos

Divulgação
O escritor norte-americano Paul Auster caminha por uma rua do bairro nova-iorquino do Brooklyn


ARTHUR NESTROVSKI
da Equipe de Articulistas


O cão é o melhor amigo do homem; o homem é o melhor amigo do cão. Nem sempre: cachorros, como pessoas, também têm seus dias de cão. Mas não nesse livro, onde a personagem principal é um viralata, amorosamente cuidado por seu dono, como também pelo autor, mesmo se nem por todas as outras personagens.
"Timbuktu", no mapa, fica na África. Na mitologia da língua inglesa, significa um lugar impossível de se chegar, o fim do mundo, o lugar-onde-Judas-perdeu-as-botas.
O novo romance de Paul Auster, lançado há pouco nos Estados Unidos (e a sair no Brasil em setembro, pela Companhia das Letras), faz de Timbuktu o país das almas, destino que se anuncia para Willy G. Christmas, um poeta mendigo moribundo, relembrado por "Mr. Bones", um cachorro que o acompanhou por décadas.
Quem conta a história é o cão: a mente ideal desse cão ideal, traduzida na prosa do narrador. "O que me interessa nos cães é a pureza das emoções. Foi a maneira que encontrei de escrever uma história de amor sem cinismo ou ironia", declarou Auster numa entrevista recente à revista "Bravo".
Mr. Bones está para Auster como o Papai Noel para Willy: um e outro são aparições de fábula, que vem "desautorizar as certezas de (nosso) ceticismo".
Que um poeta judeu hippie do Brooklyn assuma a missão natalina como lema de vida tem sua dose de humor, tanto quanto de sentimentalidade. Entre um e outro pólo, o livro equilibra suas ironias e amores, nem sempre com sucesso.
Mesmo no ambiente pouco provável do romance policial ("Trilogia de Nova York"), ou na paranóia coreografada de um livro como "Leviatã", ou até mesmo nas memórias pecuniárias de "Da Mão para a Boca", Auster sempre cortejou a parábola e a fábula como vertentes subliminares da ficção.
O risco de fazer da literatura um breviário era contrabalançado, nesses livros, pelo investimento afetivo. Lição e experiência se confundem, então, nos roteiros desse bom escritor médio.
Num filme como "Cortina de Fumaça", o roteiro (em sentido literal) é especialmente bem-sucedido. Em outros, como "O Mistério de Lulu", ou o romance "Mr. Vertigo", a experiência da lição torna-se preponderante e as lições da experiência acabam se desfazendo em nada, ou em fábula.
Em "Timbuktu", Auster assume declaradamente o gênero; mas parece mais próximo de um autor popular americano como Lars Eighner ("Travels with Lizbeth") do que de ancestrais nobres como Esopo e La Fontaine.
De qualquer modo, o propósito é similar. O bicho é o homem do homem; e o homem é o bicho de si. Transformar esses adágios em parábolas não rende mais muitas possibilidades de representação. Para representar o que não pode ser representado, Auster dá outra volta nas ironias e faz do artifício deslavado a rota da sinceridade possível.
Seu gesto de autor é comparável ao da personagem: o poeta Christmas é mais um figurante na tradição americana moderna de desajustados, bêbados, miseráveis e junkies como porta-vozes da verdade, se não da santidade. (Bernardo Carvalho já salientou, também, a ligação entre o poeta Christmas e uma linhagem de "artistas da fome", de Kafka a Artaud.)
Que a divinização de Christmas venha filtrada pelo olhar do cão é o que sustenta o livro em seus melhores momentos. Mas não é o bastante para atenuar as tonalidades mais sacarinas desse conto de Natal.
"Fazer do mundo um lugar melhor" e "trazer alguma beleza para as almas" não chegam a ser mandamentos pronunciáveis no mundo da ficção, nem fora dela. Todo esforço da fábula é tornar possíveis frases como essas; mas o perigo, que cada leitor vai avaliar a seu modo, é saber se o livro, afinal, não se torna uma fábula do esforço.
"Perdido no limbo, entre um lugar nenhum e outro" soa melhor como definição desse cachorro, e nem só desse cachorro, e não só dos cachorros. Entre lugar nenhum e outro, o intervalo do livro tem seus pequenos esplendores, para saciar os artistas da fome de estilo tanto quanto de alimentos.
Ou as duas de uma vez, como na descrição de uma projetada torradeira elétrica transparente, "uma obra de arte em cada cozinha, uma escultura luminosa a ser contemplada" por nós toda manhã, observando maravilhados a transformação incandescente do pão.
O cão é o escritor do escritor; se o escritor fosse o cão do cão, não seria Auster, cuja bondade, ou sentimentalidade está sempre atrás de uma forma possível de literatura. Enfim: há escritores e escritores, cães e cães. Saudades de Quincas Borba.


Avaliação:  


Livro: Timbuktu Autor: Paul Auster Lançamento: Henry Holt Quanto: US$ 22 (182 págs.) Onde encomendar: livraria Cultura (0/ xx/11/285-4033) e Amazon (www.amazon.com)


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