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26ª BIENAL DE SP
Curador não consegue executar a concepção da exposição
Mostra tem bom enredo, mas não funciona como um todo
TEIXEIRA COELHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
A introdução do curador
Alfons Hug ao principal catálogo desta Bienal, dedicado aos
artistas convidados, é quase mais
estimulante do que a exposição
em si. Refiro-me ao texto onde a
26ª Bienal ainda aparece com o
seu nome original, "Terra de Ninguém", mais expressivo do que o
comedido "Território Livre" afinal adotado.
Gosto da visão não deferente
que Hug tem das metrópoles subdesenvolvidas. E de sua recusa da
arte sociológica, o "poli-kitsch"
como diz -ainda mais numa
Bienal dita democrática e popular. E da adesão (insinuada) às teses de Adorno sobre a autonomia
da arte, contra as de Benjamin por
uma arte revolucionante.
E compartilho sua valorização
da tese de Schiller sobre o estético
como meio para tornar racional o
homem sensível (ou o contrário)
-menos por firme convicção,
agora, do que por ser esse o derradeiro recurso depois de esgotadas
as farsas e tragédias do político, da
religião, do saber. E gosto de sua
defesa da pintura, que apenas um
contemporaneismo apressado
crê esgotada. Portanto gostaria de
ver seu enredo encenado.
Mas, outra vez, como numa
premiação do Oscar, o argumento ganha prêmio, embora não a
direção, nem os atores ou o filme
em si. Não que Hug imagine coisas. O que ele elabora e menciona,
existe: Gerhard Richter existe,
Duchamp e Cézanne existiram.
Pena não estarem na Bienal.
Algumas coisas, no entanto, não
passam do papel para a realidade
da mostra, como a pertinência da
remontagem do ateliê recifense
de Paulo Bruscky no sagrado pavilhão paulistano. Objetos, livros,
imagens "estranhamente deslocados" deveriam conter o segredo
da arte de seu dono e da arte atual.
Mantido à distância, porém, o visitante, que passa rápido por algo
que com ele nada compartilha, é
convocado a crer na palavra do
curador. E a instalação, destacada
no catálogo, vira curiosidade tanto quanto metáfora desta Bienal:
pelo menos aqui há uma analogia
entre a "waste land" de que fala
Hug e o que é mostrado.
A 26ª Bienal tem seus atrativos,
por certo -apesar do paradoxo
de que, numa mostra dominada
pela pintura, as fotos de Vera Lutter sejam talvez o ponto alto: invenção, perícia, sensibilidade,
aquilo que se requer. Mas as pinturas de Muntean e Rosenblum
são também momento forte, com
sua explicita alusão à justaposição
entre passado e presente, na vida e
na arte. E "Cidades Invisíveis", de
Jonas Dahlberg, é o que se espera
de um vídeo/filme numa Bienal: o
instante da experiência meditativa tão estimada por Hug.
Em grau complementar, as fotos de Thomas Demand, a pintura
de Luc Tuymans, o maquinismo
mínimo de Milton Marques
(quando funciona) têm seus instantes cativantes. A partir daí, a
"terra de ninguém" se amplia. As
grandes pinturas de Albert Oehlen exibem sinais de fadiga do
déjà vu. E do preciosismo vazio de
Matthew Ritchie se resvala para
infantilidades como o avião de tesourinhas "pós 11/9" do decepcionante Cai Guo Qiang, que não pôde acender seu fogo. A gaia arte
tem lugar numa Bienal, sem dúvida. Mas há limites.
A questão do valor coloca-se
ainda a propósito de outras seções. Difícil entender uma "sala
especial" para Beatriz Milhazes:
cedo demais. Idem quanto ao
aqui dispensável Huang Yong
Ping. Até a de Barrio é um problema: mostrar o mundo (quase) como ele é ("ready-made" encenado) não basta mais.
A cenografia será em parte responsável pela diluição do impacto
que algumas obras poderiam ter.
Se a Bienal é de pintura, a opção
por um desenho espacial com largas "ruas", como no segundo andar, não ajuda. O rompimento
com o dia-a-dia e o mergulho reflexivo apreciados por Hug não se
dão: o visitante é estimulado a
"passar" diante das obras, transformadas em outdoors, sem quase alterar o passo e no meio da cacofonia geral; como na rua.
Faltaram mais ambientes onde
arte e espectador se refugiassem,
mesmo que o design ficasse menos "clean". Preservou-se demais
o espaço da arquitetura. Até o
grande totem luminoso de David
Batchelor ficou anulado. O prédio
de Niemeyer foi de novo parte do
problema, não da solução. (O catálogo traz, já na capa, fotos do interior vazio do edifício; a Bienal
tem de se livrar do fetiche desse
prédio.) Cada modo da arte pede
um modo de espaço. Não há "terra de ninguém" aqui.
Falta peso à Bienal. Ou contrapeso. Faltaram aquele Gerhard
Richter na pintura, um Bill Viola
no vídeo. Optar entre o valor jovem e o consagrado é um falso
problema: a questão é dosar ambas margens da arte.
Claro, uma geração mais jovem
pode ali encontrar valores que
nem percebo. O que me parece irrelevância -por exemplo, os painéis luminosos de "O Mundo Justificado, Alinhado à Direita etc.",
de Ângela Detanico e Rafael
Lain- revela-se, a uma jovem artista visitante, "muito conceitual,
muito criativo". Não vejo assim...
embora sempre procure imaginar
o que tira disso tudo o "público
comum", como outro jovem com
cara de ver pouca arte na vida, porém longamente parado diante de
uma foto do Demand.
Quer dizer, a Bienal sempre
cumpre uma função, e este breve
texto não lhe fará a justiça possível. Mas falta peso aqui. Talvez
por não haver no mundo arte boa
o suficiente para tamanha inflação de bienais. O curador fica entre repetir o que todo o mundo já
viu ou arriscar com o desconhecido e errar. Vida dura a de curador.
Seja como for, mesmo pensando
só na "arte escolhida" (os países
mandam o que querem), o texto
que se lê do curador continua melhor do que a maior parte da arte
que ali se vê. Ou então eu é que já
vi arte demais.
Teixeira Coelho é ensaísta, professor titular da ECA-USP, autor de "Dicionário
Crítico de Políticas Culturais" e "Niemeyer - Um Romance" (ed. Iluminuras)
26ª BIENAL DE SP. Onde: av. Pedro
Álvares Cabral, s/nº, portão 3, pq.
Ibirapuera, SP, tel. 0/xx/11/5574-5922.
Quando: de seg. a qui., das 9h às 22h, e
de sex. a dom., das 9h às 23h; até 19/12.
Quanto: entrada franca.
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