São Paulo, domingo, 31 de outubro de 2004

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26ª BIENAL DE SP

Curador não consegue executar a concepção da exposição

Mostra tem bom enredo, mas não funciona como um todo

TEIXEIRA COELHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A introdução do curador Alfons Hug ao principal catálogo desta Bienal, dedicado aos artistas convidados, é quase mais estimulante do que a exposição em si. Refiro-me ao texto onde a 26ª Bienal ainda aparece com o seu nome original, "Terra de Ninguém", mais expressivo do que o comedido "Território Livre" afinal adotado.
Gosto da visão não deferente que Hug tem das metrópoles subdesenvolvidas. E de sua recusa da arte sociológica, o "poli-kitsch" como diz -ainda mais numa Bienal dita democrática e popular. E da adesão (insinuada) às teses de Adorno sobre a autonomia da arte, contra as de Benjamin por uma arte revolucionante.
E compartilho sua valorização da tese de Schiller sobre o estético como meio para tornar racional o homem sensível (ou o contrário) -menos por firme convicção, agora, do que por ser esse o derradeiro recurso depois de esgotadas as farsas e tragédias do político, da religião, do saber. E gosto de sua defesa da pintura, que apenas um contemporaneismo apressado crê esgotada. Portanto gostaria de ver seu enredo encenado.
Mas, outra vez, como numa premiação do Oscar, o argumento ganha prêmio, embora não a direção, nem os atores ou o filme em si. Não que Hug imagine coisas. O que ele elabora e menciona, existe: Gerhard Richter existe, Duchamp e Cézanne existiram. Pena não estarem na Bienal.
Algumas coisas, no entanto, não passam do papel para a realidade da mostra, como a pertinência da remontagem do ateliê recifense de Paulo Bruscky no sagrado pavilhão paulistano. Objetos, livros, imagens "estranhamente deslocados" deveriam conter o segredo da arte de seu dono e da arte atual. Mantido à distância, porém, o visitante, que passa rápido por algo que com ele nada compartilha, é convocado a crer na palavra do curador. E a instalação, destacada no catálogo, vira curiosidade tanto quanto metáfora desta Bienal: pelo menos aqui há uma analogia entre a "waste land" de que fala Hug e o que é mostrado.
A 26ª Bienal tem seus atrativos, por certo -apesar do paradoxo de que, numa mostra dominada pela pintura, as fotos de Vera Lutter sejam talvez o ponto alto: invenção, perícia, sensibilidade, aquilo que se requer. Mas as pinturas de Muntean e Rosenblum são também momento forte, com sua explicita alusão à justaposição entre passado e presente, na vida e na arte. E "Cidades Invisíveis", de Jonas Dahlberg, é o que se espera de um vídeo/filme numa Bienal: o instante da experiência meditativa tão estimada por Hug.
Em grau complementar, as fotos de Thomas Demand, a pintura de Luc Tuymans, o maquinismo mínimo de Milton Marques (quando funciona) têm seus instantes cativantes. A partir daí, a "terra de ninguém" se amplia. As grandes pinturas de Albert Oehlen exibem sinais de fadiga do déjà vu. E do preciosismo vazio de Matthew Ritchie se resvala para infantilidades como o avião de tesourinhas "pós 11/9" do decepcionante Cai Guo Qiang, que não pôde acender seu fogo. A gaia arte tem lugar numa Bienal, sem dúvida. Mas há limites.
A questão do valor coloca-se ainda a propósito de outras seções. Difícil entender uma "sala especial" para Beatriz Milhazes: cedo demais. Idem quanto ao aqui dispensável Huang Yong Ping. Até a de Barrio é um problema: mostrar o mundo (quase) como ele é ("ready-made" encenado) não basta mais.
A cenografia será em parte responsável pela diluição do impacto que algumas obras poderiam ter. Se a Bienal é de pintura, a opção por um desenho espacial com largas "ruas", como no segundo andar, não ajuda. O rompimento com o dia-a-dia e o mergulho reflexivo apreciados por Hug não se dão: o visitante é estimulado a "passar" diante das obras, transformadas em outdoors, sem quase alterar o passo e no meio da cacofonia geral; como na rua.
Faltaram mais ambientes onde arte e espectador se refugiassem, mesmo que o design ficasse menos "clean". Preservou-se demais o espaço da arquitetura. Até o grande totem luminoso de David Batchelor ficou anulado. O prédio de Niemeyer foi de novo parte do problema, não da solução. (O catálogo traz, já na capa, fotos do interior vazio do edifício; a Bienal tem de se livrar do fetiche desse prédio.) Cada modo da arte pede um modo de espaço. Não há "terra de ninguém" aqui.
Falta peso à Bienal. Ou contrapeso. Faltaram aquele Gerhard Richter na pintura, um Bill Viola no vídeo. Optar entre o valor jovem e o consagrado é um falso problema: a questão é dosar ambas margens da arte.
Claro, uma geração mais jovem pode ali encontrar valores que nem percebo. O que me parece irrelevância -por exemplo, os painéis luminosos de "O Mundo Justificado, Alinhado à Direita etc.", de Ângela Detanico e Rafael Lain- revela-se, a uma jovem artista visitante, "muito conceitual, muito criativo". Não vejo assim... embora sempre procure imaginar o que tira disso tudo o "público comum", como outro jovem com cara de ver pouca arte na vida, porém longamente parado diante de uma foto do Demand.
Quer dizer, a Bienal sempre cumpre uma função, e este breve texto não lhe fará a justiça possível. Mas falta peso aqui. Talvez por não haver no mundo arte boa o suficiente para tamanha inflação de bienais. O curador fica entre repetir o que todo o mundo já viu ou arriscar com o desconhecido e errar. Vida dura a de curador. Seja como for, mesmo pensando só na "arte escolhida" (os países mandam o que querem), o texto que se lê do curador continua melhor do que a maior parte da arte que ali se vê. Ou então eu é que já vi arte demais.


Teixeira Coelho é ensaísta, professor titular da ECA-USP, autor de "Dicionário Crítico de Políticas Culturais" e "Niemeyer - Um Romance" (ed. Iluminuras)

26ª BIENAL DE SP. Onde: av. Pedro Álvares Cabral, s/nº, portão 3, pq. Ibirapuera, SP, tel. 0/xx/11/5574-5922. Quando: de seg. a qui., das 9h às 22h, e de sex. a dom., das 9h às 23h; até 19/12. Quanto: entrada franca.


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