São Paulo, domingo, 31 de outubro de 2004

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CRÍTICA

Série traz imperador do mundo em chinelos

BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA

Enquanto a eleição presidencial dos EUA se desenrola num clima de suspeitas de irregularidades, na ala oeste da Casa Branca tudo vai bem. O presidente é um homem forte, sábio e humano. De modos meio caipiras, ele parece seu vizinho de porta; mas na hora em que conversa com os líderes mundiais, seu espírito atilado se revela.
Estamos falando de Jed Bartlet, o democrata à frente do governo norte-americano em "The West Wing". É uma daquelas séries multiplamente indicada e vencedora de Emmys, um seriado top de linha, exibido pela Warner e pelo SBT. Há atores interessantes, vindos do cinema e do teatro. A primeira-dama, por exemplo, é interpretada pela excelente Stockard Channing, do emblemático "Seis Graus de Separação". Bartlet é um Martin Sheen bem mais pesado, mas muito menos atormentado do que aquele que infartou ao viver o Marlowe de "Apocalipse Now".
Os roteiros, mesmo já entrando na sexta temporada (aqui, a começar no mês que vem; nos EUA, acabando em março), são produto da melhor escola norte-americana de histórias seriadas. Há diversidade de caracteres, verossimilhança, referências pop e da alta cultura, ritmo, coerência, emoção. O texto joga com inteligência com o circunstancial -os acontecimentos poderiam estar acontecendo hoje, mas Bartlet não é bem Bush nem o anti-Bush- e com aquilo que se quer entender como um "universal" da figura do presidente dos EUA.
Tudo muito correto, charmoso, esperto. De onde vem a sensação de absurdo que emana dos episódios de "The West Wing"?
Se é verdade que a ficção é um terreno de invenção, também parece correto afirmar que os limites daquilo que se engole estão traçados, com tinta invisível. A idéia de dramatizar a vida do governante máximo de uma nação e de "espiar" ficcionalmente os bastidores do gabinete presidencial pode ser atraente, mas será que o esforço vale? Há um problema de credibilidade, mas há sobretudo um problema de intenções nisso. O espectador não-americano fica se perguntando para quê querem me contar isso?
É curioso que a indústria do entretenimento ocidental ria-se tanto da cultura produzida pelo realismo socialista. Há mais pontos em comum do que faz supor o abismo técnico e no fator diversão entre uma e outra. O forte compromisso ideológico de ambas, embora atuem em direções aparentemente opostas, por exemplo. O didatismo imbecilizante. A imposição de valores indiscutíveis. Só que enquanto os hinos, pôsteres e peças de teatro edificantes do realismo socialista tangenciavam a caricatura, a máquina do entretenimento utiliza disfarces cada vez mais diversos e criativos.
A agenda de "The West Wing" é clara: trata-se de mostrar o imperador do mundo em chinelos, realçar sua humanidade e, sobretudo, convencer da inevitabilidade de suas decisões, quaisquer que sejam. Em outras palavras, de despolitizar a política.


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