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Álvaro Pereira Júnior

Pensar, atirar, ser livre

Hitchens é um tipo de intelectual raro no Brasil: público e não acadêmico, dispara para todo lado

Ainda existe um livre-pensador, e seu nome é Christopher Hitchens. Para quem vive no ambiente político brasileiro -polarizado, sectário, de alinhamentos automáticos e posições pré-definidas-, é quase impossível imaginar que exista tal figura, um franco-atirador das ideias.

Nada melhor do que a autobiografia, "Hitch 22", para conhecer seu pensamento. Foi o primeiro livro que baixei no iPad. Vacilei por não ter lido antes.

"Hitch 22" é mais político do que pessoal. É, de certo modo, uma biografia também dos amigos do autor. Desde os 20 e poucos anos, o inglês Hitchens, 62, faz parte de uma turma unida que inclui os escritores Martin Amis, Ian McEwan, Julian Barnes e James Fenton. Num momento mais recente, também Salman Rushdie.

Hitchens é um tipo de intelectual raro no Brasil: público e não acadêmico. De erudição e memória prodigiosas, não foge de polêmicas, dispara para todo lado. Um paralelo possível é com Paulo Francis.

Os dois personagens mais atacados por Hitchens, Henry Kissinger e Bill Clinton, estão em extremos opostos do espectro político. Kissinger, ex-secretário de Estado de republicanos, é fulminado: "Mentiroso, assassino, criminoso de guerra, pseudoacadêmico, chato''.

Para o democrata Clinton, contemporâneo de Hitchens em Oxford, não sobra coisa melhor: "Mentiroso habitual e profissional (...), odioso (...), testa de ferro subserviente de todo tipo de interesses corporativos (...)''.

Filho de pai militar e mãe dona de casa (mas aspirante a uma vida glamorosa), Christopher aproximou-se, na universidade, da esquerda. Incapaz de fechar os olhos ao totalitarismo de Stálin, aderiu ao trotskismo, como tantos de sua geração.

E, como tantos trotskistas, décadas depois migrou para a direita (outro paralelo com Francis). O ponto de inflexão foi a invasão do Iraque pelos EUA, depois do 11 de Setembro. Com base numa "bússola moral" própria, apoiou a ação de George W. Bush.

Hitchens já tinha feito diversas reportagens no Iraque, em especial no norte curdo. Avaliou que o regime brutal de Saddam tinha de ser derrubado, e que cabia aos EUA fazê-lo.

Mas o livro não trata só de política. É cheio de história saborosas.

Acerca das lendárias conquistas amorosas do amigo Martin Amis, "Hitch 22" fala de uma festa em que uma respeitável dama da sociedade disse para o marido que ia lá ver um negócio e já voltava, mas aproveitou para escapar com Amis para um canto sossegado. Desse rápido encontro resultou uma filha, que Amis só conheceria 20 anos depois.

Do colega e ídolo Gore Vidal, Hitchens relata como aquele e um amigo comum, Tom Driberg, aliciavam rapazes na via Veneto, em Roma, para com eles desenvolver práticas sexuais variadas. Primeiro, comparecia Vidal, sem piedade. Em seguida, os moços eram encaminhados a um aposento contíguo, onde Driberg, por assim dizer, os consolava.

É especialmente marcante o encontro de Hitchens, então um jovem repórter, com Jorge Luis Borges. O inglês estava em Buenos Aires para escrever sobre a ditadura argentina para o semanário "New Statesman". E aproveitou para conhecer o escritor.

Encontrou um Borges doente, confuso, carente. Já cego, o argentino pediu que Hitchens lesse para ele. Borges elogiou os militares no poder (ele odiava o peronismo mais que tudo). Hitchens não conseguia ir embora. O velho solitário não deixava.

Salman Rushdie é outro que ganha destaque. À polêmica sobre seus "Versos Satânicos" é dedicado um capítulo inteiro. Hitchens relata o papel que teve na articulação de intelectuais que repudiaram a sentença de morte emitida contra o escritor pelo então líder espiritual do Irã, aiatolá Khomeini.

Denuncia como covardes os que não se mobilizaram (cita nominalmente o dramaturgo Arthur Miller) e enaltece uma opositora política, Susan Sontag, pela coragem de liderar o movimento pró-Rushdie.

Críticos reclamaram de o livro falar pouco da vida pessoal de Hitchens. Ele aborda francamente a morte da mãe (num pacto suicida com um amante) e conta como só aos 38 anos descobriu ter origem judaica. Mas, de fato, ficaram de fora suas notórias bebedeiras e conquistas femininas, numerosas e tumultuadas.

O fato de ele ter descoberto um câncer de esôfago só depois de concluir o livro também enfraquece um pouco o conjunto.

Ainda assim, "Hitch 22" é leitura indispensável. Quase terminando este texto, descobri que já saiu no Brasil. Melhor ainda.

cby2k@uol.com.br

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