Texto Anterior
|
Próximo Texto
| Índice | Comunicar Erros
Crítica Biografia Retrato de Dante confunde fato e conjectura Em livro, Barbara Reynolds deixa de lado a sisudez acadêmica e chega a tratar poeta italiano como 'showman' Segundo autora, Dante recorreu a substâncias alucinógenas para escrever 'A Divina Comédia' Mauricio Santana DiasESPECIAL PARA A FOLHA Barbara Reynolds dedicou a vida inteira aos estudos de literatura e língua italiana, em especial à obra de Dante Alighieri (1265-1321). A autora inglesa escreveu artigos e proferiu uma infinidade de palestras, preparou edições do poeta florentino, redigiu prefácios de livros, traduziu "A Vida Nova" para o inglês. Em 2006, aos 92 anos, publicou esta biografia de mais de 600 páginas, na qual pretende, como afirma já no primeiro parágrafo de sua introdução, apresentar "uma nova perspectiva de Dante". E acrescenta que, após ter relido toda a obra dele -"desta vez com uma mente independente"-, ela traça em seu livro o retrato de um Dante "nunca antes visto". Não deixa de ser louvável a atitude intrépida de Reynolds, embora logo se acenda uma luz de alarme e o leitor se pergunte se tudo o que a autora fizera até então não tinha sido com "mente independente". Seja como for, a declaração de princípios da autora implica pelo menos duas consequências decisivas: um deliberado esquecimento da tradição crítica dantesca e uma liberdade de invenção autoral quase ilimitada. O resultado disso é que, embora a narrativa de "Dante" seja de leitura agradável e desimpedida, sem o peso excessivo de certos trabalhos acadêmicos, ao fim e ao cabo o leitor não será capaz de discernir muito bem o que ali se deve tomar por fato, por conjectura bem fundamentada ou por pura lenda. DA INFÂNCIA AO EXÍLIO Nesse sentido, o trabalho de Reynolds parece retroceder ao período das leituras românticas do século 19, passando por cima das pesquisas filológicas iniciadas sobretudo por Michele Barbi (1867-1941). Os primeiros quatro capítulos de "Dante" -de um total de 55- se estendem da infância do poeta até o momento de seu exílio, em 1302. Em tom levemente romanesco, a autora afirma, por exemplo, que os poemas de juventude, mais tarde incorporados ao livro "A Vida Nova", "deviam ser algo semelhante a um concerto ou recital", isso porque o poeta "tinha formação em música" -como se Dante fosse um trovador provençal do século 12. ALUCINÓGENOS Mais adiante, no capítulo 10, o poeta de Beatriz é catapultado à condição de "showman", passando de trovador cortês ou jogral a uma espécie de animador de auditório midiático. Constatando que seu tratado filosófico "Il Convivio" "não tinha encontrado seu mercado" -diz a autora- e percebendo que "existia uma demanda popular por contos sobre maravilhas", Dante, "como um magistral showman, pegou um cenário primitivo e o desenvolveu em uma produção bem organizada", que iria resultar no poema hoje conhecido como "A Divina Comédia". Para tanto, o poeta teria aguçado sua capacidade visionária profética recorrendo a substâncias alucinógenas, assim como, nos anos 1950, o escritor Aldous Huxley (1894-1963) abriu "As Portas da Percepção" com a chave da mescalina. Ilações desse tipo, sem nenhuma fundamentação em documentos, misturadas a análises pertinentes da obra de Dante, pontuam a biografia do início ao fim. Transitando à vontade entre o hipotético, o provável e, não raro, o absurdo, Barbara Reynolds sai-se melhor nas passagens em que parafraseia ou comenta de perto "A Divina Comédia", poema que de fato ela conhece muito bem. MAURICIO SANTANA DIAS é professor de literatura na USP e tradutor DANTE
AUTORA Barbara Reynolds |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |