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MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

¡Viva Julião!

Cidade do México, anos 70

JOÃO SILVÉRIO TREVISAN

Entre 1973 e 1975, vivi em autoexílio nos EUA e no México, onde me tornei amigo de Francisco Julião (1915-99) -ele com seus 60 anos, eu com meus 30. Líder das ligas camponesas de Pernambuco, Julião era um ícone no imaginário esquerdista da minha geração. Para o governo da ditadura militar brasileira, Julião rimava com subversão.

No México, ele fora acolhido como herói pelo PRI (Partido Revolucionário Institucional), que se apropriara do ideal da Revolução Mexicana, e assim se manteve no poder por 70 anos, a partir de 1929. Enquanto ostentava uma política externa arrojada, inclusive em relação a Cuba, o PRI impunha controle férreo dentro do país.

Num simulacro de democracia, ocorriam eleições fraudulentas, e a corrupção grassava. Reprimiam-se protestos oposicionistas, como no emblemático massacre de Tlatelolco, em 1968, quando o Exército matou centenas de estudantes e trabalhadores.

Ainda assim, era difícil não se apaixonar pelo México, com suas belezas e bizarrices -como piqueniques com "mariachis" em pleno cemitério, no Día de Muertos. Além do mais, desde a Copa do Mundo de 1970, os mexicanos amavam os brasileiros, a ponto de taxistas não me cobrarem corridas. O amor era totalmente correspondido por mim. E Cuernavaca ocupava o ponto alto desse amor.

Morando na Cidade do México, eu viajava de ônibus nos fins de semana, por pouco mais de uma hora, subindo as montanhas até os 1.500 metros, onde ficava Cuernavaca. Fascinado pelo vulcão Popocatepetl onipresente no seu horizonte, eu ainda não a relacionava ao romance etílico de Malcolm Lowry, "À Sombra do Vulcão".

A cidade me encantou simplesmente por seu clima e pela vanguarda tanto artística quanto política que abrigava. Mas também porque lá eu matava as saudades do Brasil. Ficava hospedado na casa de estilo colonial onde Francisco Julião morava com sua esposa chilena. Lá conheci muita gente, como o ex-padre austríaco Ivan Illich, criador de uma pedagogia libertária e hoje injustamente esquecido.

Conheci também o grande cartunista Rius, comunista e vegetariano, que escreveu "Marx para Principiantes" em quadrinhos, na linhagem genial de José Guadalupe Posada. Ganhei de presente dele seu livro em quadrinhos, "¡La Panza es Primero!", no qual aprendi os princípios do vegetarianismo, que pratiquei em boa parte do meu exílio.

No México de então, acotovelavam-se exilados de toda a América Latina. Identificado com o passado camponês revolucionário mexicano, Francisco Julião recebia especial deferência. Não por acaso, morava em Cuernavaca, capital do Estado de Morelos, onde Emiliano Zapata liderou os campesinos na sangrenta revolução nos primórdios do século 20.

Bem antes de conhecer o Zapata de Marlon Brando e Elia Kazan, no filme "¡Viva Zapata!", na casa de Julião eu me encontrei com um autêntico coronel zapatista, quando já não restavam muitos. Com seu sombrero típico, sandálias e bigodão branco, ele viera tratar-se de uma insônia que o impedia de dormir há anos. Tinha cinco minutos diários de apagão como simulacro de sono.

Orgulhoso por ter conseguido furar uma barreira policial na estrada, o coronel revelou-nos seu "colt" dos tempos da revolução, que carregava como honraria e que eu apreciei com assombro. Julião o conhecera quando percorria o Estado de Morelos para entrevistar e fotografar os líderes revolucionários remanescentes. Pretendia fazer um documentário sobre eles. E me chamou para escrever o roteiro.

Participei com Julião de uma reunião para discutir o financiamento do filme. Mas nada conseguimos. Talvez os mexicanos achassem esdrúxulo estrangeiros fazerem um outro "¡Qué Viva México!" sem as credenciais de Sergei Eisenstein. Eu até entendo. Só não sei que fim levaram as belíssimas fotos dos zapatistas. Nunca mais encontrei Julião, mesmo após sua volta ao Brasil. Daqueles tempos, sobrou um conto inédito, relatando o resto da história. Mas isso fica para depois.

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