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Arquivo aberto

Memórias que viram histórias

A permissão de Drummond

Rio de Janeiro, anos 70

ALBERTO MARTINS

Gastão Frazão foi o mais culto dos amigos de geração de meu pai, e também o mais disciplinado. Morava num sobrado na rua Pasteur, 114, em Santos, e teve, até muito recentemente, um estúdio nas imediações, recheado de livros, discos e dos quadros que pintava.

Por volta dos 17, 18 anos, quando comecei a escrever poemas com frequência, meu pai costumava submeter os meus escritos à apreciação do Gastão. Invariavelmente este me devolvia os poemas redatilografados como prosa, sem os espaçamentos e as quebras de verso que constavam do original.

Nas suas cópias, Gastão acrescentava duas ou três variantes a mão. Individualista ferrenho, não emitia um juízo de valor abrangente sobre os poemas, apenas deixava muito claro que preferia a sua versão à minha.

A esta generosidade de leitor correspondia uma secura mais do que exemplar. Ao saudar alguém, Gastão não experimentava constrangimento nenhum em deixar o amigo, a amiga, de mão estendida no ar. Beijo na face, nem se fala. A recusa, mais do que de temperamento, era ideológica: um modo de se manter à distância das conveniências burguesas.

Talvez por isso não me lembre dele em nossa casa. Éramos quase sempre nós, mas sobretudo meu pai, a visitá-lo no estúdio aos sábados ou domingos de manhã.

Meu pai teve com Gastão uma convivência rica e turbulenta, com o intercâmbio sentimental alternando ciclos de admiração e de raiva. Primeiro, a raiva. Gastão trabalhou a vida inteira no comércio e, mais tarde, já aposentado, foi fazer um bico no pequeno escritório de corretagem de meu pai, grande trabalhador indisciplinado que nunca se aposentou.

Nos dias de calor na rua 15, centro nervoso do comércio de café na praça de Santos, as sandálias e bermudas com que Gastão se apresentava podiam levar meu pai (conservador nos costumes, porém não em arte) simplesmente à loucura.

A admiração deve ter começado na mocidade, por caminhos que desconheço. Sei que foi Gastão que levou meu pai para um encontro numa célula comunista em Santos. Gastão ingressou no Partido, onde permaneceu talvez por algumas décadas; meu pai não passou da primeira reunião.

Se em política divergiam, em pintura havia convergência: tanto na paixão comum por Klee e Picasso (vale dizer, por tudo que a arte moderna prometia em termos de liberdade e reinvenção do senso plástico da vida) como em sua prática. Meu pai pintou de forma interrupta, esporádica, com períodos de maior ou menor intensidade, atormentado (a palavra é forte, mas talvez justa) por suas responsabilidades como chefe de família. Gastão, que lamentava não ser músico ou escritor, dedicou-se com afinco e fez obras de real interesse nessa área.

Uma vez foi ao Rio de Janeiro procurar Cecília Meirelles, contar da gratidão que tinha por sua poesia e lhe entregar flores. Outra, em meados dos anos 70, resolveu ir ao Rio para encontrar Carlos Drummond de Andrade e falar do apreço que sentia por sua obra. Levou de presente um quadro de sua autoria e, de cambulhada, meus poemas.

A resposta do poeta veio algum tempo depois pelo correio. Pelo que me lembro era breve, polida e inteligente: sugeria que a poesia era atividade imprevisível, que ninguém podia dizer que rumos deveria tomar alguém que escrevia poemas aos 17 anos e, portanto, o melhor a fazer era deixar o rapaz escrever por conta própria, sem interferências.

O bilhete de Drummond ficou anos guardado no cofre da casa de meus pais, em Santos, e se perdeu com a venda da casa no final dos anos 90. Por sua lembrança, agradeço ao Gastão.

Esta crônica, que comecei a rascunhar meses atrás, terminou de ser escrita em 7 de fevereiro, perto do meio-dia. Por volta das 13h, minha mãe ligou dizendo que Gastão Frazão morrera naquela manhã. Tinha 97 anos.

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