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Música

A dança dos maestros

Os regentes e suas linguagens secretas

RESUMO Para tentar entender a sintonia que existe entre os movimentos do maestro e a música produzida pelos instrumentistas, regentes que estiveram em temporada de apresentações em Nova York ajudam a decompor seus movimentos em partes do corpo: mão esquerda, mão direita, rosto, olhos, pulmões e cérebro.

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DANIEL J. WAKIN
tradução CLARA ALLAIN

BRAÇOS ESCULPEM o ar. Uma mão se fecha. Um dedo indicador se projeta. O torso oscila para frente e para trás. E, não se sabe como, música jorra em resposta a essa dança misteriosa no pódio, música coordenada com precisão e emocionalmente expressiva.

O público sintoniza os ouvidos na orquestra e invariavelmente fixa os olhos no regente. Mas mesmo o ouvinte mais experiente pode não ter consciência da conexão sutil e profunda entre os movimentos do maestro e a música que emana dos instrumentistas.

Assim, para compreender o que acontece, entrevistamos regentes que passaram por Nova York em temporadas recentes, procurando decompor os movimentos em partes do corpo -mão esquerda, mão direita, rosto, olhos, pulmões e, o mais indefinível, cérebro.

O objetivo fundamental do regente é infundir vida a uma partitura, através do estudo, de sua personalidade e sua formação musical. Mas ele demonstra o sentido da música por meio de movimentos corporais. É preciso lembrar que a arte de reger não se limita a gestos semafóricos. É uma dança em compasso de dois tempos, envolvendo corpo e alma, gestos físicos e personalidade musical.

MÃOS Tradicionalmente (pelo menos para os destros), a mão direita segura a batuta e marca o pulso. Ela controla o tempo e indica quantas batidas ocorrem em um compasso. A batuta geralmente assinala o início de um compasso com um movimento para baixo (o "downbeat"). Um movimento para cima ("upbeat") é a preparação para o "downbeat".

Os manuais de regência dizem que o "upbeat" e o "downbeat" devem levar o mesmo tempo e que o intervalo deve ser igual ao comprimento da batida. "O 'upbeat' é a preparação para qualquer evento", disse Alan Gilbert, diretor musical da Filarmônica de Nova York.

Mas um regente não é um metrônomo de casaca. "Um dos grandes equívocos em relação ao que os regentes fazem é a ideia de que eles ficam lá, marcando o tempo", disse Bicket. "A maioria das orquestras não precisa de alguém marcando o tempo."

A batuta também pode moldar o som. A natureza do "downbeat" -abrupta, delicada- transmite à orquestra que tipo de caráter deve conferir ao som que vai produzir. A batuta pode suavizar fraseados agitados, realizando o movimento de modo mais abrangente.

Alguns regentes preferem não usar a batuta em alguns momentos ou o tempo todo. Yannick Nézet-Séguin, que a partir de setembro será o diretor musical da Orquestra da Filadélfia, é um deles. Sua formação se deu em corais, nos quais raramente se emprega a batuta.

"As mãos estão ali para descrever um certo espaço do som e moldar aquele material imaginário", disse Nézet-Séguin. O corpo imaginário de som está em frente ao maestro, entre o peito e as mãos, ele explicou. "É mais fácil quando não há nada em uma mão." Ele começou a usar batuta quando começou a atuar como regente convidado de grandes orquestras, que estavam acostumadas com isso.

Tendo entregado as incumbências rítmicas à mão direita, a esquerda tem finalidade bem mais maleável. Em termos grosseiros, se a mão direita esboça os contornos gerais da pintura, a esquerda preenche as cores e texturas.

A mão direita cria a casca de chocolate do bombom, e a mão esquerda molda o recheio. Sua principal utilidade prática é dar deixas aos naipes ou músicos individuais sobre quando entrar e quando cortar, o que faz muitas vezes com dedo indicador apontado.

Se a mão esquerda se fecha ou o polegar e os dedos se fecham, isso pode fazer a frase musical encerrar-se suavemente. Um movimento rápido para baixo indica um corte abrupto no som.

James DePreist descreveu os gestos de mão esquerda às vezes inexplicáveis de outros regentes: William Steinberg costumava esfregar os dedos, como no gesto usado universalmente como símbolo de dinheiro. Antal Dorati fazia movimentos de empurrar abruptamente, "como se estivesse fazendo uma bola de som subir e ficar boiando no ar".

Nézet-Séguin é um dos regentes mais expressivos fisicamente, em razão de sua baixa estatura, disse ele. Sua mão esquerda se movimenta constantemente. Ele contou que procura mantê-la em posição lateral em relação à orquestra, para que sua região palmar anterior não seja vista pelos músicos como uma barreira simbólica.

Gilbert observa que não é preciso dizer a músicos profissionais em que momento de um compasso eles devem entrar. Ele frequentemente se prepara para dar a deixa a um músico, olhando para ele antes da hora, para criar uma conexão com ele e intensificar a energia. O objetivo de uma deixa é "fazer com que as pessoas entrem na hora certa e do modo certo, dentro do fluxo", disse Gilbert.

ROSTO Depois dos braços, a parte mais importante do arsenal do maestro é seu rosto. "Sinto como se meu rosto cantasse com a música", disse Nézet-Séguin. Comunicar-se com os músicos por um olhar pode tranquilizá-los e encorajá-los. Por outro lado, alguns regentes, como Fritz Reiner, não mudam de expressão, mas suas gravações são "completamente eletrizantes", afirmou o regente britânico Harry Bicket. Manter-se inexpressivo também pode beneficiar a moral dos músicos.

"Demonstrar sua frustração ou seu desagrado na expressão facial é algo que não ajuda ninguém", disse Bicket. Mas sobrancelhas erguidas podem ser maneiras sutis de transmitir insatisfação. O rosto se torna ainda mais importante quando as mãos estão ocupadas com outra coisa, como, por exemplo, quando um regente toca um teclado simultaneamente, prática comum de especialistas em música antiga, como Bicket.

Os próprios olhos "são o mais importante de tudo quando se rege", disse Xian Zhang. "Eles devem ser o que mais revela a intenção musical. Os olhos são as janelas do coração. Eles mostram o que você sente em relação à música."

Às vezes é importante não olhar para os músicos, especialmente durante solos. "Essa é uma parte grande dos segredos de regência que não costumam ser verbalizados", disse Zhang. Isso pode evitar que o músico ceda ao nervosismo.

E existe um ou outro caso raro do maestro que rege com os olhos fechados e produz grandes performances, como muitas vezes fez Herbert von Karajan.

Leonard Bernstein foi um dos regentes mais expressivos fisicamente dos tempos modernos, fato que, às vezes, atraía o desprezo dos críticos. Mas era capaz de reger com as mais sutis expressões faciais, conforme foi evidenciado por um vídeo clássico no YouTube em que suas sobrancelhas dançam, seus lábios se comprimem e seus olhos se arregalam.

Nézet-Séguin disse que tomou consciência da postura das costas ao assistir a videoteipes de Karajan. Nézet-Séguin trabalhava então com Carlo Maria Giulini. "A diferença principal entre o som de um e outro se devia às atitudes humanas deles, que eram expressas por suas costas", disse. A postura básica de Karajan era "muito orgulhosa, com os ombros para trás e atitude de estar no comando".

"É a atitude de alguém que espera que as coisas venham a ele." Para Nézet-Seguin, essa qualidade podia ser fria, majestosa, distante.

Mas o magrelo Giulini se debruçava para frente assim que a música começava, "num gesto de aproximar-se das pessoas, de lhes dar alguma coisa, de servir".

"É uma linguagem corporal muito reveladora", disse o regente, e estava relacionada às interpretações calorosas de Giulini.

Zhang costuma debruçar-se para frente para arrancar mais intensidade da orquestra. Às vezes, inclina-se para trás para fazer com que os músicos toquem mais suavemente. Ou então se inclina para frente para cobrir o som, disse ela, "como quem apaga um incêndio".

RESPIRAÇÃO Os regentes muitas vezes falam da importância da respiração: de inalar junto com o "upbeat", para preparar para uma entrada, mais ou menos como um cantor inala antes de começar a cantar. "As cordas precisam ser incentivadas a respirar", disse Nézet-Séguin, tanto quanto os instrumentos de sopros. "Isso torna a coisa toda mais natural."

Para Bicket, respirar junto quando ele rege é uma necessidade. Se suas mãos estão ocupadas de outro modo, tocando cravo ou órgão, sua deixa para as entradas muitas vezes é uma respiração audível. A natureza dessa respiração pode afetar a música. Uma inalação forte e aguda gera um som mais nítido e destacado.

Nas entrevistas, os regentes deixaram claro que, para eles, os movimentos corporais são menos importantes que a preparação mental e as ideias musicais que residem em outra parte do corpo: o cérebro. Os regentes precisam "até certo ponto não ter consciência" do que estão fazendo com seu corpo, disse Nézet-Séguin.

Disse ainda que Giulini ensinava que "a clareza de um gesto vem da clareza de sua mente". A confusão decorre da fração de segundo de hesitação, em que a mente está decidindo qual gesto usar.

Zhang utiliza uma técnica adotada de seu mentor, Lorin Maazel: "Uma projeção mental". Uma imagem mental clara do som que você quer ouvir permite uma entrada clara. Projetar mentalmente o pulso e o som, ela acrescentou, "comanda nossas próprias mãos".

Como disse Conlon: "Poderíamos discutir gestos e posturas físicas interminavelmente, mas, em última análise, há um elemento impalpável e carismático que pesa mais que tudo isso. Até hoje ninguém conseguiu enquadrar esse elemento. Graças a Deus."

Este texto foi publicado originalmente pelo jornal "The New York Times".

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