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Enxugando gelo

O que (não) acontece nas cúpulas

RESUMO Jonathan Powell, ex-chefe de gabinete de Tony Blair, critica a morosidade e a pouca produtividade das cúpulas internacionais. Alimentadas pela facilidade dos voos de longa distância, hoje esses encontros reúnem dezenas de líderes mundiais dependentes de assessores e de truques para desgastar as negociações.

JONATHAN POWELL

TRADUÇÃO CLARA ALLAIN

É temporada de cúpulas internacionais outra vez. No prazo de pouco mais de uma semana, tivemos três. A cúpula da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) aconteceu em Chicago, a cidade do presidente americano Barack Obama; o G8, numa demonstração de parcimônia conspícua, reuniu-se em Camp David, base militar e casa de campo presidencial, ao invés do resort turístico luxuoso de praxe, e ainda outra cúpula da União Europeia aconteceu em Bruxelas.

Hoje as cúpulas acontecem com tanta regularidade que os líderes veem seus pares estrangeiros com mais frequência que seus colegas de gabinete ou até mesmo suas famílias. Os séquitos de primeiros-ministros e presidentes cruzam os céus em seus aviões. Assessores correm na esteira dos líderes mundiais, carregando pilhas sempre crescentes de papéis.

É claro que essas reuniões existem desde que existem os líderes. Pense no Campo do Pano de Ouro, de Henrique 8º, no Congresso de Viena ou em Yalta. Esses foram eventos do tipo que só acontece uma vez na vida; os líderes levaram semanas ou meses para chegar a eles. Mas na década de 1970 começaram a surgir cúpulas de um tipo novo, alimentadas pela facilidade de fazer viagens aéreas e pelo papel crescente dos líderes na política externa, às custas do sacrifício de diplomatas.

O argumento favorável às cúpulas é que é importante construir confiança pessoal entre líderes, para que eles possam fechar negócios e contratos. O ex-secretário do Exterior britânico David Miliband argumenta: "Se você tem um relacionamento pessoal com alguém, se puder demonstrar que sempre respeitou e ajudou essa pessoa, ela facilitará as coisas para você."

Na realidade, porém, juntar líderes nem sempre facilita as coisas. Charles Powell, que foi assessor de política externa da ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher (1979-90), diz que ela odiava cúpulas, principalmente devido à participação de estrangeiros nelas. "E nas cúpulas passava-se muito tempo chegando a acordos com concessões, o que ela odiava, ou discutindo palavras ao invés de substância, algo que ela também odiava. Logo, Thatcher não ficava feliz em cúpulas, de maneira alguma. A única maneira que ela encontrou de fazer com que cúpulas funcionassem bem para ela era ser 'Maggie batalhadora, que enfrenta todo o mundo'. Foi perguntado a ela : 'Qual é a sensação de estar isolada contra 11 pessoas?', e ela respondeu: 'Pena dessas 11 pessoas'.".

DESCORTESIA A proximidade estreita pode resultar em atos de extraordinária descortesia pessoal. Me recordo de ouvir o ex-presidente francês Jacques Chirac (1995-2007) dizer que às vezes as pessoas perdem uma ótima oportunidade de se calarem, após uma intervenção especialmente enfadonha de um chanceler finlandês na cúpula europeia em Nice, presidida pelo próprio Chirac.

Mas o ex-presidente francês superou-se numa cúpula posterior promovida para discutir onde seria localizada a sede da Agência Europeia de Alimentação. Quando os finlandeses propuseram Helsinque, ele causou grande ofensa ao indagar: "Por que colocar uma agência de alimentação num lugar onde as pessoas comem renas?".

A partir do momento em que os líderes entram na sala de reuniões, as câmeras de TV ficam para fora e as portas se fecham, eles estão por conta própria. Suas equipes, que também ficam do lado de fora, se esforçam desesperadamente para descobrir o que está acontecendo na reunião. Ulli Wilhelm, ex-porta-voz de Angela Merkel, me disse que a chanceler alemã costumava lhe enviar mensagens de texto sobre as últimas novidades no interior da sala, para que ele pudesse informar a imprensa da Alemanha.

O conceito subjacente às cúpulas é que é mais fácil conseguir concordância em torno de problemas complexos se você colocar os líderes numa sala, apenas entre eles, sem deixar que altos funcionários interfiram. Com frequência isso significa pedir aos líderes que negociem com base em textos muito detalhados que eles não entendem.

O ex-primeiro-ministro britânico John Major (1990-97) teve que recorrer a medidas desesperadas em suas negociações do Tratado de Maastricht. É permitida a entrada no recinto das reuniões de funcionários para entregar mensagens, mas depois disso eles devem partir. John Kerr, o principal assessor de Major para a Europa, ficou entrando e saindo da sala durante a fase final e crucial das negociações, até que Major se cansou e insistiu que ele permanecesse. Durante a discussão dos últimos pontos, bastante complexos, Kerr precisou agachar-se debaixo da mesa e cochichar conselhos a Major.

Não houve problema enquanto o presidente da mesa, o então primeiro-ministro holandês, Ruud Lubbers (1982-84), expôs as emendas em francês, alemão ou inglês. Mas, quando as expressou em holandês, Kerr ficou aturdido. Major lhe perguntava o que ele pensava de uma proposta específica e Kerr respondia que não sabia, já que Lubbers estava falando em holandês. Major olhava para Kerr, debaixo da mesa, com espanto. Ele próprio tinha entendido perfeitamente, já que ouvira as propostas em inglês, através de seus fones de ouvido.

LONGO ALMOÇO O número de pessoas presentes nas cúpulas vem aumentando exponencialmente. As cúpulas europeias começaram com apenas seis delegados, mas hoje há 27. Se todos insistirem em falar, e eles geralmente sentem a necessidade disso para justificar sua presença, um dia inteiro é gasto só com discursos. Isso faz com que seja impossível fechar acordos em volta da mesa. As partes-chave precisam retirar-se para negociar a portas fechadas. Aquelas que são excluídas se irritam mais e mais com o passar do tempo.

Tivemos essa experiência acentuada em 1998, quando o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair (1997-2007) presidiu o Conselho Europeu numa discussão para a escolha da presidência do recém-criado Banco Central Europeu.

Nos foi dito que o chanceler alemão Helmut Kohl (1982-98) e o presidente Chirac tinham acordado reservadamente que o candidato holandês, Wim Duisenberg, começaria como presidente e então daria lugar ao candidato francês, Jean-Claude Trichet. A reunião começou com um almoço, e Blair disse aos líderes em volta da mesa o que tinha sido acordado e pediu licença para telefonar a Duisenberg para lhe contar a boa-nova.

Acabou sendo o almoço mais longo da história. Acompanhei Blair quando atravessamos o saguão, chegando a uma grande sala vazia, e lhe entreguei um telefone celular com Duisenberg do outro lado da linha. Vi a expressão de Blair ficar desanimada. Ninguém tinha contado a Duisenberg, e ele não aceitou a decisão.

O resto do dia foi passado em negociações frenéticas com Kohl, Chirac e os holandeses, até finalmente fecharmos um acordo improvisado depois da meia-noite. Os outros participantes da cúpula estavam cada vez mais aborrecidos, e Blair assumiu publicamente a culpa por tudo.

Hoje em dia os acordos europeus são amarrados pelo modesto presidente permanente do Conselho, o belga Herman Van Rompuy. Seu chefe de gabinete me disse que eles aplicam as lições aprendidas na política da Bélgica. É preciso ser criativo e inventivo para manter as pessoas unidas, traçando acordos de pacote nos quais todos ganhem alguma coisa. Ele descreveu isso como sendo semelhante à corrida de "Alice no País das Maravilhas" em que todos ganham um prêmio.

Eu costumava me perguntar por que as cúpulas terminavam às 3h ou 4h da madrugada, ao invés de um horário mais civilizado. A razão disso, é claro, é que o presidente gosta de deixar os pontos realmente difíceis para serem discutidos tarde da noite, para que as diferentes partes estejam exaustas e desistam de discutir. Isso também beneficia os que precisam ceder: eles podem dizer à imprensa de seus respectivos países que passaram a noite discutindo a questão, ao invés de terem cedido na hora do café da tarde.

Uma das melhores alavancas para concluir uma negociação é a fome, especialmente com a presença do chanceler Kohl. Quanto mais passava da hora do almoço, mais ansioso ele ficava e mais disposto a acelerar a discussão para concluir um ponto.

Depois do acordo fechado vem a entrevista coletiva à imprensa às 4h da manhã. Geralmente ocorre uma corrida deselegante ao microfone para ser o primeiro a expor sua versão do que foi acordado. Os premiês britânicos sofrem de uma desvantagem singular. A imprensa da maioria dos países europeus tende a descrever qualquer resultado como triunfo para seu país. Já a imprensa britânica sempre busca destacar uma derrota, um isolamento ou uma rendição. E, com frequência, acha um assunto doméstico interessante muito mais sedutor que os fatos que estão se desenrolando em Bruxelas.

Na última cúpula europeia, o premiê britânico David Cameron estava tentando falar de suas propostas para o emprego, mas a imprensa queria lhe perguntar sobre o fato de ter andado no cavalo da jornalista Rebekah Brooks, ex-braço direito do magnata australiano Rupert Murdoch, a primeira indiciada no escândalo do jornal "News of the World".

EXCESSO As cúpulas passaram por mudanças dramáticas nos mais de 30 anos em que as conheço. Acontecem mais e mais cúpulas, com mais e mais participantes. E elas mudaram de formato. Acrescentamos a Rússia ao G7 para convertê-lo no G8 e então convidamos a China, Índia, África do Sul e Brasil, porque não é possível tomar decisões globais sem ter a presença das pessoas certas. Agora o G20 é o que ganha mais destaque, porque é preciso um grupo mais amplo para enfrentar a crise econômica global.

Será que tudo ficou um pouco excessivo? Será que as cúpulas já se esgotaram, como pensa o ex-secretário-geral da Otan Peter Carrington? Encontros cara a cara darão lugar a teleconferências? Não acredito. A globalização faz com que as decisões domésticas sejam cada vez mais limitadas por fatos que ocorrem em outras partes do mundo, e não é possível avançar sem envolver outros líderes. Na realidade, as cúpulas europeias não são ações de política externa, mas uma extensão da política doméstica. E nada supera a chance de ver os olhos de seus colegas exaustos às 3h, fechando um acordo.

Portanto, embora os líderes possam se queixar do cansaço de cúpulas, a única coisa pior que ser convidado para cúpulas demais é não ser convidado ou ver decisões sendo tomadas em reuniões das quais você foi excluído.

Texto publicado originalmente pelo jornal britânico "The Guardian".

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