São Paulo, domingo, 12 de setembro de 2010

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ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Um elefante incomoda muita gente

São Paulo, 1988

MARIA ALICE VERGUEIRO

O ANO ERA 1988, tempos não absolutamente democráticos, embora não tão cerceadores. O Teatro do Ornitorrinco tinha terminado uma temporada de três anos de sucesso com "Ubu Rei", de Alfred Jarry. Era uma grande alegria, depois de termos passado por momentos tão difíceis no Teatro Oficina e no próprio Ornitorrinco.
Nossa próxima empreitada seria "O Doente Imaginário", de Molière. No tempo do autor, em plena corte de Luís 14, tido como grande apreciador das artes, era comum circularem pelas cidades, e mesmo pelos ambientes palacianos, desde artistas mambembes, saltimbancos e bufões a curiosas atrações do Oriente, cheirando a especiarias, ou mesmo ultramarinas, do Novo Mundo (parece que até um autêntico índio brasileiro foi parar por lá).
Eu, Cacá Rosset e Chris Tricerri pensamos que o lugar ideal para o novo espetáculo seria o Teatro Municipal de São Paulo. Seria emblemático encenar Molière em uma construção neoclássica francesa, operística, historicamente elitista e, ao mesmo tempo, "municipal", ou seja, do povo. A montagem e sua divulgação precisavam estar à altura.
Altura de um elefante, no caso, foi o que pensamos para sacudir um pouco ares porventura altivos demais, sem deixar de fazer jus à nobreza de nosso público, como no tempo do "Rei Sol". Era preciso ousar.
Planejávamos desfilar, Chris e eu, montadas no simpático animal, muito inteligente -símbolo indiano da sabedoria e das artes, aliás-, desde a praça do Patriarca até o próprio teatro.
Evidentemente, não nos deram a mínima. Os tempos eram de abertura, mas mesmo as aberturas têm seus limites. Não abririam as portas do Municipal, cuja administração antipatizou com a ideia de ter um elefante subindo suas gloriosas escadarias (na verdade, seria preciso enfiar o pobre do bicho no elevador). Um elefante, afinal, incomoda muita gente.
Para não entregarmos os pontos assim, sem mais, a Chris teve uma nova ideia. Foi procurar o Zé Wilson Leite, dono de um circo, e eis que se materializou o nosso elefante, enorme e de verdade -esse da foto. Convidamos então o Ary Brandi, outro parceiro e fotógrafo, que topou clicar a cena. A foto foi parar nos principais jornais. No mínimo fizemos um certo barulho.
Quanto ao espetáculo, acabamos por estrear em Sertãozinho (SP), que nos recebeu de bom grado. Em seguida fomos convidados a participar de um festival de teatro na Cidade do México, lugar maravilhoso, de uma cultura popular também riquíssima. Lá conseguimos outro elefante, que nos acompanhou nas apresentações. Era bem pequeno, talvez um elefante-pônei -esquisito como nós.
Vinte e tantos anos depois, neste mesmo município de São Paulo, deparo-me novamente com a ideia de levar à cena um elefante. Meio chileno, meio mexicano, assumidamente estrangeiro (residente de Estranja, segundo ele próprio): Alejandro Jodorowsky e sua deliciosa peça "As Três Velhas" (em cartaz até 31/10). Tão deliciosa a ponto de fazer esta velha elefanta aqui comprar a briga e voltar à arena.
Do Teatro Municipal ao Centro Cultural Banco do Brasil, também no coração da cidade. De Molière a este autor anárquico, pânico e pândego. Do elefante à elefanta... Que agora tem até um elevadorzinho para subir ao palco. Estão duvidando?
Vão ver o espetáculo no CCBB e tirem a prova.


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