São Paulo, domingo, 13 de março de 2011

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ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Valentia assistida

São Paulo, 1972-95

GLAUCO MATTOSO

Fallei ja deste assumpto, em prosa e verso, mas só de passagem, envergonhado da covardia, ou na duvida entre duas covardias: a fuga da vida pelo suicidio e a opção pela vida por medo de mactar-me antes de ficar cego. Desarchivar a confissão das successivas tentativas suicidas é um exorcismo que vem a calhar, no momento em que desmonto minha bibliotheca, prestes a completar sessenta annos e recem completando os quattro mil sonetos: tudo tem cheiro de pagina virada. Os livros foram para o sebo, excepto alguns presenteados aos amigos. Nas mãos de Lourenço Mutarelli deixei, dias atraz, dois volumes sobre suicidio, um delles o manual intitulado "Modo de Usar", que nunca me serviu. Talvez sirva a algum personagem do Lourax Mutarax...
Deschartadas, de prompto, as soluções chimicas, e sendo a ponctuda faca, na gaveta do creado mudo, a garantia implicita de que jamais seria usada, minha fixação se voltou para uma precipitação que, contradictoriamente, não podia ser precipitada: influenciado por Assis Valente, pensei em me jogar do Pão de Assucar ou do Corcovado, mas só quando me mudasse para o Rio. Antes, considerei um salto do edificio Italia ou do Martinelli. Um viaducto seria arriscado, poderia não ser fatal. Verifiquei que, no Terraço Italia (como no Empire State, constatei mais tarde), o parapeito estava mais para paraqueixo, era muito alto; mas, da Casa do Commendador, na cobertura do Martinelli, a mureta era facilmente transponivel. Nos morros cariocas, o paredão de pedra se verticaliza a poucos passos do limite turistico. Faltava o impulso psychologico para consummar o gesto physico.
Ray Charles perdeu a visão ainda creança, mas eu, padecendo do mesmo mal congenito, consegui adiar a perda total até os quarenta annos. Entre uma cirurgia e outra, a expectativa da cegueira me levava à extrema decisão, que a possessão poetica (ou demoniaca) sempre abortava. Finalmente, em 1995, a pressão intraocular (que ja cegara um olho em 1972, anno em que me graduava em bibliotheconomia) venceu o olho que ainda tinha residuo visual. A essa altura, eu morava à altura dum nono andar, nem precisaria sahir de casa para encerrar o caso: bastava pullar da janella. Mas não o fiz. Do contrario, estaria aqui em espirito, é claro.
Quem me assistiu, em espirito, foi um Jorge, o Borges, que tambem perdeu a visão progressivamente, tambem foi bibliothecario e tambem bruxo, alem de accompanhado por uma inseparavel presença nipponica, como eu: feminina a delle, Maria Kodama, masculina a minha, Akira. Graças a outro amigo, Jorge Schwartz, que em 1997 me convidou a traduzirmos "Fervor de Buenos Aires" para a edição brasileira das obras completas de Borges, paguei meu primeiro computador fallante com a grana do premio Jabuty que ganhamos. A informatica me trouxe de volta à vida creativa e, compulsivamente, passei a compor sonetos, me dissuadindo de vez da excappatoria suicida, que a ninguem suggiro. Em tempos de revival kardecista, nada mais edificante, não?
Falta a metaphora politica, mas esta é obvia: emquanto muitos da minha geração fugiram do obscurantismo dictatorial pelo exilio ou o enfrentaram sob tortura, alguns até à morte, eu tentei fugir isoladamente e acabei resistindo às trevas, espiritualmente guiado por outro escriptor cego, sem que tenhamos ambos cahido no abysmo. Faz algum sentido, não faz?

Nota do editor
Por opção estético-política, Glauco Mattoso restaura em seus escritos um sistema ortográfico etimológico, anterior à reforma de 1943, imposta pelo Estado Novo.



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