São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2011

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

LITERATURA

Patologias críticas

Proust foi mesmo um neurocientista?

ELIF BATUMAN
tradução PAULO MIGLIACCI

RESUMO
Mais do que explicar propósitos externos à narrativa, a boa crítica literária reside no reconhecimento dos detalhes contingentes que constituem a riqueza de uma obra de ficção. O exercício da crítica é pensado a partir do marxismo, das resenhas jornalísticas negativas e da teoria freudiana da interpretação dos sonhos.

"SUA AVALIAÇÃO [...] é verdadeira, mas não totalmente", Liev Tolstói escreveu certa vez ao crítico N. N. Strákhov, que havia encaminhado ao escritor alguns comentários sobre "Anna Kariênina" [trad. Rubens Figueiredo, Cosac Naify]. "Ou melhor, é verdadeira, mas o que você disse não expressa tudo o que eu queria dizer [...] Essa é uma das verdades que podem ser ditas. Se eu quisesse expressar em palavras tudo o que procurei dizer com o romance, precisaria escrever outro livro, tão grande quanto o primeiro".
Essa passagem resume os motivos que me levaram, na juventude, a não perceber utilidade na crítica literária. Definir "sobre o que" "Anna Kariênina" discorre seria, na melhor das hipóteses, "uma das verdades que podem ser ditas". Em se tratando de uma obra de arte, uma verdade parcial seria melhor do que uma inverdade?
Se Tolstói quisesse dizer alguma coisa sobre uma questão não narrativa -a "questão da mulher", por exemplo- ele decerto teria encontrado um jeito mais direto de fazer isso do que narrar as vidas afetivas paralelas de Lievin, agricultor da baixa aristocracia, e Anna, cunhada da cunhada dele.
Além disso, não lemos Tolstói porque ele foi um grande pensador sobre a questão da mulher, mas porque foi um grande romancista. Tentar criticar "Anna Kariênina" não seria o equivalente a contratar um chef de cozinha para lavar o seu carro?
Deixei-me convencer pelo argumento de Tolstói de que a única interpretação exata, portanto veraz, de "Anna Kariênina" seria recontar a história na íntegra. Uma vez que "Anna Kariênina" já existia com 100% de precisão factual, que utilidade poderia ter o trabalho de Strakhov? Quem se importa com o que Strakhov supunha que Tolstói queria dizer quando o próprio Tolstói dedicou muito tempo e esforço para escrever exatamente o que queria?

FREUD O texto que mais transformou a minha opinião sobre a crítica literária provavelmente foi "A Interpretação dos Sonhos", de Sigmund Freud, que li na universidade. A ideia de que determinados fatos em nossas vidas são articulados apenas em forma de ficção -histórias cuja trama só se relaciona com preocupações não narrativas de um modo mais complexo e menos evidente- deixou-me profundamente impressionada. E se os romances funcionassem da mesma forma?
E se a história de Lievin e Anna fosse o único meio possível de Tolstói expressar uma coisa diferente de sua história, relacionada a ela de forma meramente elíptica -algo sobre, digamos, o papel das mulheres na sociedade russa, ou sobre a inadequação generalizada do romance francês, ou sobre as implicações existenciais do motor a vapor e, acima de tudo, sobre os pensamentos e sentimentos ambíguos que esses fenômenos despertavam em alguém como Tolstói?
Na verdade, Freud tem uma resposta para cada objeção implícita que a carta de Tolstói a Strakhov revela. Ele reconhece, por exemplo, a incompletude da interpretação -"Mesmo que a solução pareça satisfatória e irretocável", escreve, "a existência de significados adicionais continua possível"- sem concluir, porém, como faz Tolstói, que a interpretação seja, portanto, improdutiva ou desnecessária.
Para Freud, a multiplicidade de explicações satisfatórias (superdeterminação) é típica do modo como os sonhos expressam con-teúdos: por meio de deslocamentos, substituições e condensações cuja lógica só pode ser revelada por um rastreamento cuidadoso de palavras e imagens.

MATERIAL CONTINGENTE Minha primeira e mais forte objeção pessoal à crítica literária se relacionava ao fato de que "Anna Kariênina" não pode ser resumido, mas apenas parafraseado. No plano mais básico, um romance, diferentemente de uma epopeia ou mito, é feito do material contingente da vida e da linguagem: formas de expressão, conversas, digressões, descrições, subtramas. Num romance, esse tipo de coisa é essencial. Se você gosta de "Anna Kariênina", provavelmente gosta é disso. Mas de que maneira o romance pode ser interpretado? Parecia-me que o romance tinha como âmago um denso tecido mimético e linguístico que jamais poderia ser referenciado fora de si mesmo.
Freud, no entanto, demonstra um modo de assimilar, no reino do significado, os detalhes miméticos mais contingentes e arbitrários. Ao analisar um sonho sobre uma monografia botânica, por exemplo, ele determina que o tema associado a flores teve por origem acontecimentos triviais do dia anterior -um encontro com o Professor Gärtner, cuja mulher tinha "saúde florescente", e uma conversa com ele sobre uma paciente chamada Flora-, depois explorados, numa sequência de engenhosas associações, para expressar preocupações repletas de significado emocional sem nenhuma relação com a jardinagem.
Mas, Freud questiona em seguida, como será que a explicação correta de um sonho pode depender de algo tão frágil quanto um encontro ao acaso? Até que ponto o "significado" do sonho pode ser importante ou real se sua expressão depende de contingências como essas? E se o professor Gärtner tivesse viajado para o exterior, ou o nome da paciente não fosse Flora?
A resposta é que o sonho teria encontrado fragmentos diferentes de experiência a fim de comunicar a mesma preocupação subjacente: tarefa simples, dada a riqueza da linguagem e a amplitude dos recursos da mente humana. Essa observação me fez compreender pela primeira vez de que maneira o vasto material incidental de um romance pode ser ao mesmo tempo arbitrário e dotado de significado. Ainda que qualquer trecho de um romance seja ditado em larga medida pelo acaso, e que possa facilmente ter surgido de maneira diferente, ainda assim se presta à interpretação.

BELEZA A última objeção à crítica literária, que Freud resolveu para mim, foi a questão da beleza. A beleza é certamente o atributo que define a literatura -mas o que a crítica pode fazer com ela? Será que ela não deixaria a beleza de lado, feito uma pilha de fibras impossíveis de digerir? Ou, por outra: se a literatura é um veículo para outro conteúdo, por que não expressar esse conteúdo de modo mais eficiente? Por que o valor adicional da beleza? Seria a beleza apenas o açúcar usado para adoçar um remédio amargo? Se é nisso que a pessoa precisa acreditar para trabalhar como crítico, quem desejaria fazê-lo?
Freud mostra que a beleza não é, de forma alguma, um valor adicional. Não está sobreposta ao conteúdo feito a cobertura de um bolo. Em vez disso, os componentes estéticos quase sempre indicam um nível oculto de significado: uma riqueza de significação que é exatamente aquilo que, de início, havíamos percebido como beleza. "Um belo sonho e indiscrição nenhuma não coincidem", escreveu Freud -e o mesmo pode ser dito sobre beleza e significado. Em outras palavras, aquilo que faz de "Anna Kariênina" uma obra de arte, e não uma espécie de tratado, pode indicar que a interpretação não é apenas possível, mas necessária.
Os críticos de Freud volta e meia o acusam de ser inimigo da beleza. Não estaria ele dizendo aos sonhadores e artistas, essencialmente, que suas "belas" criações são insuficientes quando não vêm acompanhadas das explicações "racionais" que a psicanálise oferece? Por isso Susan Sontag descreveu a interpretação como "vingança do intelecto contra a arte".
Para mim, porém, o método de Freud invariavelmente extrai ainda mais beleza e arte do sonho. Quem sonha não se mostra como uma coleção de pulsões biológicas, mas como uma mente capaz de criar um mundo complexo, repleto de nuanças e significados.

MARXISMO Devo esclarecer que não proponho uma equivalência literal entre a crítica literária e a psicanálise, nem entre romances e sonhos. Esse é o erro de boa parte da crítica psicanalítica, que trata a literatura como uma fachada que oculta alguma verdade latente e desagradável acerca do desenvolvimento sexual do escritor. Uma aplicação mais produtiva e fiel (ainda que menos literal) das teorias de Freud à literatura pode ser encontrada na crítica marxista, que vasculha obras de arte em busca de sinais -não da história pessoal e sexual do escritor, mas da história mais ampla.
A literatura, vista dessa forma, torna-se um sonho gigantesco e multifário, produzido por um momento histórico. O papel do crítico, portanto, seria menos o de explicar à exaustão uma obra isolada, e mais identificar, num grupo de obras, um reflexo de alguns aspectos condicionados da realidade.
Da mesma forma como existem aspectos de nossa vida pessoal sobre os quais só podemos aprender por meio do estudo sistemático dos sonhos, há coisas sobre a condição humana que só podemos aprender por meio de um estudo sistemático da literatura. Concluirei meu raciocínio com dois exemplos de textos críticos que, creio, empregam a literatura dessa maneira.

REFLEXO DISTORCIDO Começarei por um dos textos críticos que causaram impressão especialmente forte durante minha pós-graduação: "Marxismo e Forma" (1971; Hucitec, ed.
esgotada), de Fredric Jameson. Ainda me lembro de como me comovi ao ver uma passagem de Proust sobre o salão de Guermantes -um mundo inteiramente dedicado "a relacionamentos pessoais, conversação, arte, moda, amor"- descrita por Jameson como um reflexo "distorcido" da utopia marxista: "Um mundo no qual a mão de obra alienada terá deixado de existir, no qual a luta do homem com o mundo externo e com suas confusas imagens internas e externas da sociedade terá dado lugar ao confronto do homem consigo mesmo".
De fato, prossegue Jameson, Saint-Simon, escritor muito caro a Proust, produziu o mesmo tipo de reflexo distorcido em seu livro sobre a vida na corte de Luís 14: "Uma espécie de harém de existência genuinamente humana em meio às brutalidades do absolutismo barroco". Talvez, portanto, a própria fofoca -"esse ponto de encontro entre conversação e arte, esse vício profundamente fértil" de Saint-Simon, Balzac e Proust- seja "uma imagem distorcida daquela paixão por tudo o que é humano em seus menores detalhes, que nos será comum a todos na sociedade transfigurada".
Adoro essa passagem pois ela aponta para uma justificação a um só tempo eloquente e absurda para o culto de Proust à aristocracia: a de que a classe ociosa era, por bem ou por mal, a única "fonte de imagens concretas" de uma utopia sem classes. Portanto, Proust não era só um esnobe! -ou, mais precisamente, eis a verdadeira definição do esnobismo: a expressão, assim como a fofoca, do esforço por obter uma existência genuinamente humana.
Uma interpretação marxista ruim reduziria "Em Busca do Tempo Pedido" a um manifesto; uma boa interpretação marxista poderia demonstrar de que maneira a mesma fantasia que gerou, digamos, a poesia futurista russa -o sonho de Maiakóvski de um mundo no qual Stálin "reportaria a produção de versos em nome do Politburo"-, teria se manifestado também para Proust, em meio à colmeia de relacionamentos pessoais de Versalhes.

RESENHA NEGATIVA "Marxismo e Forma" é um texto clássico sobre textos clássicos. No segundo exemplo, escolhi uma espécie diferente, mas igualmente importante de trabalho crítico: uma resenha literária negativa. "Rise of the Neuro-novel" ["A Ascensão do Romance Neurológico"], ensaio de Marco Roth para a revista "n+1", é uma das melhores resenhas desfavoráveis que li este ano.
Roth começa fazendo uma lista cronológica de romances angloamericanos com premissas neurológicas ou patológicas, formada por "Amor para Sempre" [trad. Paulo Reis, Rocco], de Ian McEwan (síndrome de Clérambault); "Brooklyn Sem Pai Nem Mãe" [trad. Hélio Guimarães, Companhia das Letras], de Jonathan Lethem (síndrome de Tourette); "O Estranho Caso do Cachorro Morto" [trad. Luiz Antonio Aguiar e Marisa Reis Sobral, Record], de Mark Haddon (autismo); "Echomaker", de Richard Powers (agnosia facial, síndrome de Capgras); "Atmospheric Disturbances", de Rivka Galchen (de novo síndrome de Capgras); "Afluentes do Rio Silencioso" [trad. Vanessa Barbara, Companhia das Letras], de John Wray (esquizofrenia paranoide); e por aí vai.
A meu ver, costuma ser assim que a crítica mais valiosa se apresenta: uma lista de exemplos históricos ou literários -neurorromances publicados entre 1997 e 2009; escritores franceses que turbinaram seu trabalho com fofoca- seguida por uma explicação histórica. A explicação histórica de Roth é a de que o neurorromance representa o destino do romance psicológico em nossa era, em que a psicologia foi substituída pelas ciências cognitivas.
Hoje, a própria linguagem literária demanda justificação patológica, como exemplifica um dos neuronarradores de McEwan: depois de comparar o silêncio à tinta, ele acrescenta que "essa sinestesia talvez se deva ao meu distúrbio".
É como se, tendo devorado livros demais sobre psicobiologia evolutiva e comportamentos impressos nos circuitos cerebrais, a cultura angloamericana tivesse ?caído num sono pesado e sonhasse que Mrs. Dalloway sofre de síndrome de Gerstmann. De acordo com Roth, trata-se de um pesadelo. O desfecho de um neurorromance, por ser determinado biologicamente, não tem significado em termos de "ironia, destino ou castigo merecido"; nada tem a nos ensinar, a não ser sintomas descritos em manuais médicos.

GENERALIZAÇÃO Enquanto isso, o destaque dado à precisão clínica frustra o impulso do leitor para construir significados por meio da generalização do que é excepcional (patológico) para o normal (universal). Se é fato que, em algum grau, "todos suspeitamos de que as pessoas que amamos são impostores", questiona Roth, "como é que algumas pessoas têm síndrome de Capgras e a maioria não?".
Críticas negativas são particularmente empolgantes não só por "Schadenfreude" (a palavra alemã que designa o prazer em ver alguém em má situação), mas porque, uma vez que as limitações são identificadas, vislumbramos como transcendê-las. Aprender sobre as deficiências dos neurorromances atuais pode nos pôr na trilha do romance psicológico do futuro: um romance que expresse os problemas que temos agora, entre os quais o da interferência das ciências cognitivas no conceito de "self".
Quando esse romance surgir, será porque algumas pessoas escreveram neurorromances e livros como "Proust Foi um Neurocientista" [trad. Fátima Santos, Best Seller], e outras identificaram as maneiras pelas quais esses trabalhos nos cativam, sem conseguir, no entanto, descrever a existência humana.
O primeiro romance moderno já surgiu como produto, ou até mesmo expressão, de uma crítica negativa: "Dom Quixote" contém uma crítica bastante explícita aos romances de cavalaria e sua insuficiência para dar conta das sensações da vida real na Espanha do século 17. Cervantes sonhou uma versão distorcida de "Amadis de Gaula", na qual os gigantes se tornam moinhos de vento -e assim nasceu o romance. É a essa forma de impulso crítico que devemos o crescimento da literatura.

Quem se importa com o que Strakhov supunha que Tolstói quisesse dizer quando o próprio dedicou tempo e esforço para escrever o que queria?

Um romance, diferentemente de uma epopeia ou mito, é feito do material contingente da vida e da linguagem: conversas, digressões, subtramas

Há coisas sobre a condição humana que só podemos aprender por meio de um estudo sistemático da literatura


Texto Anterior: Crítica: Caleidoscópio de Boris
Próximo Texto: Cubanos por 30 dias
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.