São Paulo, domingo, 01 de fevereiro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O balanço da prostituição

Autor de "Tráfico Sexual", Siddharth Kara desenvolve modelo para calcular receitas e despesas da atividade e estima em mais de US$ 35 bilhões ao ano o lucro da escravidão sexual

PEDRO DIAS LEITE
DE LONDRES

A escravidão sexual é um negócio como outro qualquer e, para combatê-la, o modo mais eficaz é atacar o problema pelo lado econômico, diz Siddharth Kara, autor de "Sex Trafficking -Inside the Business of Modern Slavery" (Tráfico Sexual -Por Dentro do Negócio da Escravidão Moderna, Columbia University Press, 320 págs., US$ 24,95, R$ 57).
Em entrevista à Folha, ele analisa o tema pelo lado da oferta e da procura, das receitas e das despesas, isto é, do lucro. Com mais de 400 entrevistas, viagens por 14 países e seis anos de análises, Kara construiu modelos para chegar ao número de escravos no mundo, destrinchar esse mercado e buscar formas de combater o problema.
Em suas contas, existem 29 milhões de escravos no mundo, 1,3 milhão explorados sexualmente. Apesar de responderem por 4% do total, sua atividade gera 40% dos lucros da escravidão moderna atualmente. Por ano, ao menos 500.000 novas pessoas são vítimas de tráfico sexual.
O interesse pelo assunto surgiu quando Kara foi voluntário, por alguns meses, num programa de ajuda a refugiados na Guerra da Bósnia (1992-95), e o livro começou a ser produzido num MBA na Universidade Columbia, a partir de 2000. Leia abaixo as ideias e as explicações do autor.

 

FOLHA - Por que fazer análise econômica de um problema tão diretamente ligado aos direitos humanos?
SIDDHARTH KARA
- Escravidão é obviamente uma violação dos direitos humanos, mas é também fundamentalmente um crime econômico, que procura maximizar os lucros ao diminuir os custos do trabalho.
Para entender, analisar e combater a escravidão moderna, até agora não tinha sido feito um estudo econômico do problema, o que resulta em políticas falhas e desordenadas.

FOLHA - Como funciona a análise?
KARA
- Criei um modelo financeiro -com base em minhas viagens, análises e estatísticas- para construir um panorama econômico geral da escravidão moderna. O livro enfoca o tráfico sexual, que é a mais grotesca e selvagem forma de escravidão contemporânea. Apesar de apenas 4% dos escravos no mundo serem sexuais, eles geram quase 40% do lucro para os donos de escravos do mundo todo.

FOLHA - Como é possível saber isso, já que a escravidão não é um negócio transparente, que permita esse tipo de cálculo?
KARA
- O modelo que criei analisa país por país, região por região: como se faz dinheiro, quanto dinheiro se ganha e quais os custos da atividade.

FOLHA - Como assim?
KARA
- Vou dar um exemplo. Na América do Norte, normalmente os escravos sexuais são utilizados em bordéis ou casas de massagem.
Do lado da receita, temos quatro, cinco ou seis escravos, que vão fazer em média de 15 a 20 atos sexuais por dia. Em todos os meus cálculos, tento ser extremamente conservador, então colocaria algo entre oito e dez relações, considerando-se que alguns escravos podem ficar doentes ou tentar fugir.
Também há coleta de dados sobre o preço médio da compra de um ato sexual comercial, o que nos EUA é de US$ 27 a US$ 30 para um escravo. Em outros países, um bordel venderia camisinhas, salgadinhos, bebidas, mas você dificilmente encontraria isso nos EUA, então sua receita está limitada basicamente aos escravos.
No lado dos custos, você tem o óbvio: aluguel, alimentação para os escravos, funcionários -como um contador e seguranças-, pagamentos para o crime organizado em alguns países, propinas para agentes do governo e por aí vai.
Isso dá um relatório de receitas e despesas. Entram também contas mais complexas, como a aquisição e depreciação do escravo, além do custo de investimento, como camas.

FOLHA - E qual o resultado?
KARA
- No final, você chega ao lucro líquido. Na escravidão sexual, fica em torno de 70% -entre 65% e 75%, dependendo de onde você está no mundo. Isso se compara com uma margem total em torno de 60% em todas as formas de escravidão. A taxa que eu calculei é de crescimento anual de 3,5%, globalmente, da escravidão sexual, enquanto as outras formas crescem de 0,5% a 1%. Há cerca de 29 milhões de escravos no mundo hoje em dia. Desses, 1,3 milhão são sexuais. O lucro total gerado por todas as formas de escravidão em 2007 foi de US$ 91,2 bilhões. O de escravidão sexual foi US$ 35,7 bilhões, quase 40%.

FOLHA - E o que esses dados dizem sobre como combater o problema?
KARA
- Se você entender a mecânica econômica do tráfico sexual, fica claro que o apelo global do tráfico sexual é impulsionado pela capacidade de gerar imensos lucros sem quase nenhum risco.
Quando escrevi meu livro, na Índia, por exemplo, a única punição econômica relevante prevista para o uso de escravos sexuais era uma multa de US$ 44 por explorar um bordel.
Em minha análise, isso é comparado com o lucro de US$ 12.900 por escravo, por ano, nesse mesmo bordel, pela exploração dessa pessoa.
Em países como a Itália e a Tailândia não existe nenhuma pena econômica associada à exploração de escravos sexuais. Claro que em todos os países há previsão de prisão, mas as penas são curtas. Mesmo em países que têm duras punições econômicas contra esses crimes, como EUA e Holanda, o nível de investigação, processo e condenação é tão minúsculo que o risco real associado a esses crimes é próximo de zero, contra os enormes lucros de dezenas de milhares de dólares por escravo. É preciso inverter essa relação, para uma resposta abolicionista global, com intervenção, recursos e proteção aos ex-escravos.

FOLHA - Mas o que disse tem fins práticos? Cooperação global é um termo muito usado, mas com poucos resultados concretos.
KARA
- Essa indústria é como qualquer outra, movida por oferta e procura. Do lado da oferta, é beneficiada por pobreza, doença, conflitos militares, instabilidade social, com viés agudo de gênero e etnicidade.
Essas são forças enormes, que levarão tempo para serem confrontadas. Se formos erradicar a escravidão no longo prazo, esses problemas terão de ser resolvidos.
Já o lado da demanda nos dá a oportunidade de ações de mais curto prazo.
Ele é movido por: 1. demanda masculina por sexo; 2. demanda dos donos dos escravos por lucro; 3. demanda do consumidor por um preço menor de venda. Essas duas últimas são as que nos dão uma chance de intervenção.
Em todos os países que visitei, o preço do ato sexual caiu constantemente em razão do crescente uso de escravos. A escravidão permite um custo quase zero do trabalho, que normalmente é o maior custo de um negócio. Assim, quanto mais baixo é o preço, mais consumidores. Quanto mais consumidores, maior o desejo do dono de escravos por mais escravos, e é isso que é preciso atacar. É necessária uma coalizão para atacar a lucratividade e aumentar os riscos.
Calculei quantas horas de trabalho, com base no PIB per capita de cada país, são necessárias para comprar uma hora de sexo comercial de um escravo. Nunca leva mais de duas horas, e isso diz quase tudo o que se precisa saber sobre a mortal lei da oferta e da procura nesse negócio.


ONDE ENCOMENDAR - Livros em inglês podem ser encomendados pelo site www.amazon.com


Texto Anterior: Terapia em quadrinhos
Próximo Texto: Supervalorizada, escrava do Brasil vale 5.000
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.