São Paulo, domingo, 01 de maio de 2005

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Visto ao longo de sua história como diversão para as massas ou forma artística por excelência, o cinema se encontra hoje numa encruzilhada em que precisa retroceder para tentar recuperar a "estupidez perdida"

O paradoxo da sétima arte

Divulgação
Cena do filme "2046", dirigido por Wong Kar-wai


JACQUES RANCIÈRE
COLUNISTA DA FOLHA

Existe uma estranha ironia no destino do cinema. Desde os anos 1910, vem sendo saudado como a sétima arte. Há até quem o defina incondicionalmente como a arte exemplar da modernidade, a nova língua das imagens, perfeita para conciliar a invenção artística e o espetáculo de massa. No entanto o julgamento de seus detratores, que o encaram como simples distração para beócios, terminará por se impor, em longo prazo, por um motivo simples: as pessoas que freqüentam as salas escuras em busca de diversão aos sábados compartilham da opinião daqueles que desprezam o cinema e não consideram que tenha nada em comum com a arte exposta em museus e galerias.
Sabe-se como as coisas transcorreram nos anos 60, com a chamada "política do autor". Esta tinha dois aspectos: o público dos museus que conferia a determinados cineastas a qualidade de artistas, capazes de manipular figuras de estilo identificáveis para tratar de grandes temas como a solidão dos corpos, o peso do passado, os vestígios da memória ou o confronto com a morte.
Antonioni, Bergman, Resnais e mais alguns. Mas, ao mesmo tempo, os fanáticos cinéfilos que cultuavam Hitchcock e Howard Hawks contestavam a hierarquia que mal se instalara ao saudar como obras de arte válidas comédias musicais, filmes de suspense ou westerns muitas vezes classificados, até mesmo por seus autores, como parte do universo do entretenimento popular. A "nouvelle vague" pôde aproveitar, dessa forma, a dupla promoção do cineasta enquanto artista.
Mas essa promoção não se devia exclusivamente a uma retificação militante da hierarquia das artes. Que um espetáculo seja ou não considerado arte não depende exclusivamente da qualidade daqueles que o propõem ou da autoridade daqueles que o impõem. É necessário igualmente um certo dispositivo de visibilidade.
A arte se sinaliza pela singularidade de certos espaços tanto quanto pelos personagens que eles venham a conter. A idéia dominante até então era a de que a sala escura estava afeita ao divertimento, e, o museu ou a galeria, à arte.
Ora, ao mesmo tempo em que os cinéfilos impunham uma nova regra de igualdade entre a cinemateca e o cinema de bairro, abalos ainda mais espetaculares vieram a se produzir nos templos da arte, que começaram a ser ocupados por objetos e espetáculos insólitos, dos móbiles às performances, por meio dos quais os artistas pretendiam denunciar a ligação entre a arte dos museus e as formas de dominação -ou seja, derrubar a barreira entre a grande arte e as formas de vida ou as imagens e divertimentos da cultura popular. Mas o espaço do museu perdeu de maneira duradoura seu caráter formal. Montagens de objetos, séries fotográficas e vídeos entraram no mundo dos museus e destruíram a unidade das superfícies ocupadas por obras de arte.


A idéia era a de que a sala escura estava afeita ao diverti-mento, e, o museu, à arte

Parque de diversões
O cinema pode ter alterado suas técnicas. Mas seu dispositivo espacial não se alterou. Os artistas plásticos multiplicaram, nos museus, as telas ou superfícies de projeção inéditas, dispersando o poder de suas imagens. Os inovadores do teatro passaram a investir cada vez mais em lugares diferenciados, deslocando os espectadores ao longo do espetáculo ou invertendo a posição de palco e platéia. Mas o espectador de cinema persiste sempre em seu lugar na sala escura, silenciosamente contemplando o milagre da tela luminosa. Walter Benjamin acreditava que o cinema destruiria a aura de obra única proposta pelos museus.
Mas o contrário aconteceu. Hoje em dia, as pessoas circulam pela maioria dos museus e exposições como se estivessem em um parque de diversões. Mas o cinema preservou seu lugar e o confronto face a face entre o espectador e a imagem. Tornou-se o local cerimonial por excelência, e o refúgio mais seguro do valor de autor. E ganhou essa condição ainda que seus artesãos não tenham obtido sucesso em torná-lo arte; aliás, talvez tanto mais se tenha tornado quanto menor o sucesso conseguido nesse intuito. Enquanto os artistas plásticos, conscientes de que lhes cabia definir o destino da arte, a expuseram a todos os radicalismos, o cinema, livre dessa responsabilidade, pode aperfeiçoar livremente os seus prestígios. Hitchcock, Hawks ou Vincente Minnelli se tornaram, para nós, artistas incontestáveis porque as regras mesmas do jogo hollywoodiano os dispensavam de provar que o fossem. E, por outro lado, por mais que esteja presente em todos os museus de arte contemporânea, nós não estamos seguros de que o mesmo se aplique a Beuys.
O privilégio da inocência, evidentemente, só dura algum momento. Chegou o momento em que a carga da arte começou a pesar demais. Os cineastas aparentemente ainda não sentem a fadiga, mas chegamos a uma situação em que seus filmes parecem fatigados em lugar deles.
Uma prova é o recente "2046", de Wong Kar-wai, um dos representantes maiores do que se pode chamar cinema artístico de grande consumo. Alguns anos atrás, "Amor à Flor da Pele" conseguia uma conciliação exemplar entre as emoções sentimentais do passado e o desempenho da pesquisa formal. Já "2046" pretende manifestamente atingir um plano superior.

Proust e David Lynch
Assim, o filme nem mesmo terminou de nos exibir todos os sinais de sua excelência artística -o grande plano de abertura- em enigmática forma circular e já estamos nos recordando de um dos planos iniciais de "Amor à Flor da Pele" e pressentindo que o novo trabalho metaforiza a superfície da tela e o sonho vão que a ocupa, vertigem de uma travessia de espaços virtuais na qual compreendemos que estamos sendo apresentados a espirais narrativas de identidade e memória, com rupturas entre os planos, retomadas da narrativa e permutações de personagens com as quais o cineasta nos faz sentir que não é só um concorrente de David Lynch mas também um herdeiro de Proust, pela virtuosidade das circulações entre as cores e os quartos dos hotéis, o esplendor ininterrupto dos contrastes luminosos, a surpresa constante dos enquadramentos e cortes insólitos, as referências ao Japão de Yasujiro Ozu, o acúmulo de citações musicais das quais a tonalidade dramática é estabelecida por grandes árias de Bellini.
Nessa obra servida por atrizes magníficas e saturada de signos de arte, nada falta, exceto talvez a falta, exceto um pouco de liberdade que nos permita observar como e de que a arte é feita.
É isso que nos mostra, por oposição, um cineasta que encarna o cinema da arte, mas que sempre preferiu transferir a outros essa carga. O mais recente filme de Ingmar Bergman, "Sarabanda", é um caso singular.
Inicialmente, o filme parece muito distante das sofisticações do grande cinema contemporâneo. O filme começa com a narradora, Marianne, se sentando à mesa para nos apresentar, com fotos, uma história de família que transcorrerá na forma de dez cenas de diálogo entre quatro personagens -ela, seu ex-marido Johan, o filho de Johan, Henrik, criança mal-amada tornada pai tirânico, e a filha de Henrik, Karen, cuja carreira de violoncelista virtuose o pai pretende modelar.
Em lugar de todos os vestígios de memória e construção narrativa, a relação entre os quatro personagens e as três gerações é relatada por uma simples foto, a da mãe morta de Karen. E, em lugar de todos os enquadramentos virtuosos, a câmara se limita a acompanhar o diálogo à maneira clássica ou a usar efeitos de cineasta amador planos próximos que dramatizam a foto da morta ou zooms que a fazem desaparecer em branco.
No entanto dessa simplicidade ou, até mesmo, dessa aparente ingenuidade nasce uma tensão formidável entre os corpos falantes, entre os gritos de uns e o silêncio de outros, entre a precipitação dos corpos, a impassibilidade dos rostos fotografados e a expressão muda da música: um confronto essencial entre palavras e silêncios, vida e morte.
Obras-primas são sempre estúpidas, disse Flaubert. O cineasta que nada tem a provar e fala quase que do além-túmulo nos adverte de que o cinema de hoje talvez devesse retroceder e recuperar essa "estupidez" perdida.

Jacques Rancière é professor na Universidade de Paris 8 e autor de "O Dissenso" (ed. 34) e "Mal-Estar na Estética". Ele escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução dePaulo Migliacci.


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