São Paulo, domingo, 02 de abril de 2006

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OS INFERNOS DE DARWIN

SUCESSO DE CRÍTICA E PÚBLICO, "O PESADELO DE DARWIN" QUESTIONA A LINGUAGEM DO DOCUMENTÁRIO AO ATACAR A EXPLORAÇÃO DA ÁFRICA PELAS POTÊNCIAS OCIDENTAIS

MICHEL GUERRIN
JACQUES MANDELBAUM

O documentário "O Pesadelo de Darwin", do austríaco Hubert Sauper, foi um dos grandes sucessos do ano passado, tendo vendido 400 mil ingressos nos cinemas. O sucesso de crítica também foi grande, tendo o filme recebido um César [prêmio mais importante do cinema francês] e sido indicado ao Oscar. É verdade que o tema é atraente: mostrar como o Ocidente tem tudo a ganhar com a exploração da perca do Nilo, peixe do lago Vitória, na Tanzânia, e como a região onde o filme foi rodado tem tudo a perder.


Em "O Pesadelo de Darwin", não estamos distantes do princípio segundo o qual "o fim justifica os meios"


Poucas vezes um filme demonstrou tão bem, por meio de um fato local, os mecanismos da globalização e seus efeitos nocivos. Muitos espectadores viram se confirmar na tela grande suas convicções profundas quanto à maneira como o Ocidente capitalista explora aquele ao qual se convencionou chamar o Terceiro Mundo. Foi sem dúvida essa a razão principal do sucesso de "O Pesadelo de Darwin".
É também pelo fato de o filme ter sido muito visto que ele se tornou objeto de polêmica. Na revista "Les Temps Modernes", o historiador François Garçon contestou a realidade dos fatos expostos por Hubert Sauper. Para formar sua opinião própria a esse respeito, um jornalista do "Le Monde" foi até a cidade de Mwanza, às margens do lago Vitória, onde foram feitas as filmagens, e a pesquisa trouxe à tona três aspectos problemáticos do filme: depois de limpos os peixes, suas carcaças não são destinadas à população, mas aos frangos e porcos.
Essa atividade econômica contribui para o desenvolvimento da população local, e não para seu empobrecimento, e não há nenhuma prova de vínculos entre o transporte dos peixes e o tráfico de armas, sendo que esse elo, sugerido no filme, figura sobre seus cartazes e é utilizado em sua divulgação.
Em sua defesa, Sauper se vale de um argumento hoje apresentado por um número cada vez maior de documentaristas: "Minha linguagem é a do cinema". Fica subentendido que é preciso avaliar o filme pelo olhar da subjetividade do cineasta. Sauper tem razão, sem dúvida, intelectualmente falando.
Em termos práticos, não é tão simples. "O Pesadelo de Darwin" faz parte de uma onda recente de filmes que se situam no terreno da atualidade da informação e que mergulham na política e na economia mundiais e que fazem uma análise minuciosa dos poderes instituídos.
Vêm à mente as obras cáusticas de Michael Moore, especialmente "Fahrenheit 11 de Setembro", que apresenta um retrato ácido do presidente dos EUA, George W. Bush, ou "Mondovino", de Jonathan Nossiter, que mostra como a globalização molda as explorações vinícolas. Seus autores se situam no terreno do jornalismo com outras armas, no sentido em que fazem suas pesquisas encomendadas em nome de uma profissão de fé explícita.
Mas percebe-se claramente a ambigüidade desses temas no cinema: se as posições assumidas não são claramente expressas na tela, aquilo que se pretende um projeto alegórico pode ser apreendido pelo público como um acúmulo de fatos irrefutáveis. Pode-se criticar Hubert Sauper por não ter manifestado essa subjetividade suficientemente, ao jogar unicamente com a aparência de reportagem e do depoimento filmado. Sauper avança "mascarado" num filme-ensaio que é apresentado como investigação imparcial. Foi sem dúvida isso que alimentou a polêmica, diferentemente de outros filmes que poderiam ser contestados de maneira semelhante.

Manipulação ou traição
Outros grandes cineastas ditos documentais -Jean Rouch, Johan van der Keuken, Robert Kramer ou Raymond Depardon- já mostraram que faz tempo que o cinema moderno detonou as fronteiras que separam o documentário da ficção, afirmando aqui e ali a primazia subjetiva do ponto de vista e da ambigüidade a ele vinculada.
A história do documentário, em razão do mal-entendido que sua definição implica, é semeada de polêmicas recorrentes sobre a manipulação ou a traição da realidade. Recordemos dois exemplos célebres. "Nanook, o Esquimó" (1922), de Robert Flaherty, retrata o cotidiano de Nanook e sua família no grande norte canadense.
A saída triunfal do filme suscitou uma polêmica em torno da "encenação" dirigida por Flaherty, que teria reconstituído uma cena de pesca fictícia, construído um iglu de dimensões extravagantes, mandado fabricar vestimentas para os atores do filme e reinventado uma realidade da qual, no momento da filmagem, muitos elementos teriam sido, na melhor das hipóteses, ultrapassados ou, na pior, inexistentes.
Essa abordagem ideológica do diretor, sob a qual se percebe uma atitude hostil às mutações provocadas pela modernidade, não impediu o filme de ser um testemunho magnífico da cultura tradicional dos esquimós, mesmo que tenha sido idealizado e reconstituído.
"Terra sem Pão" (1933), de Luis Buñuel, é um filme de denúncia extrema da miséria da população de uma região do norte da Espanha. Em 1996, o cineasta e crítico Jean-Louis Comolli descobriu os originais do filme na cinemateca de Toulouse.

Representação subjetiva
Revelando aquilo que Buñuel rejeitou propositalmente (as manifestações de solidariedade comunitária, de ternura, de entusiasmo), estes confirmam o partido tomado pela montagem do filme, que consiste em privar a população de sua humanidade. Louis Comolli escreveu o seguinte: "Escolha de montagem, ou seja, escolha de sentido e de tom. Escurecer o traço. Forçar o tom. (...) A miséria é insuportável? Que assistir a ela seja insuportável, também. Pois a questão do cineasta é sempre a mesma (é uma questão política): como despertar em cada espectador as dúvidas e as crises que o espetáculo tem por missão, em lugar disso, reprimir e distanciar?".
Esses exemplos mostram que todo filme é antes de mais nada uma representação, uma reconstituição da realidade, uma constatação não do mundo, mas da relação do cineasta com o mundo que ele filma, relação essa que não se isenta das questões ideológicas, morais e culturais da época na qual o filme se inscreve. Todo filme, incluindo o documentário, é, nesse sentido, uma mentira da qual, na melhor das hipóteses, se pode esperar que seja posta a serviço de uma verdade.
Com o filme de Sauper, não estamos distantes do princípio segundo o qual "o fim justifica os meios". Para alguns, aqueles que consideram sua leitura da fábrica de peixes como um contra-senso ou que acham que nem tudo da globalização deve ser atirado no lago, o cineasta foi longe demais. Outros irão saudar o tom alegórico ou panfletário de um filme notável que trata da secular exploração da África.
Entramos aqui numa discussão política que ultrapassa o objeto do litígio. No plano do cinema, Johan van der Keuken confessou, antes de morrer: "Pouco importa a trapaça -a base precisa ser justa".
Ele acrescentou: "A praga do documentário é querer explicar o mundo sem esse enorme buraco da dúvida, do não saber".

Este texto foi publicado no "Le Monde".
Tradução de Clara Allain.


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