São Paulo, domingo, 02 de maio de 2010

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Império Universal

Igreja neopentecostal cresce mundialmente, exporta sua hierarquia chefiada por brasileiros e enfrenta acirrada concorrência religiosa


Expansão se apoia em mix de racionalismo empresarial com arcaísmo mágico


Lucília Monteiro - 2004/"Visão"
O bispo Edir Macedo durante culto na cidade do Porto, em Portugal

RICARDO MARIANO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Neste ano, o pentecostalismo completa um século no Brasil, que, não por acaso, é o maior país pentecostal do mundo, com mais de 30 milhões de adeptos. Em meados dos anos 50, formou-se o movimento "O Brasil para Cristo", cujo próprio nome delimitava o escopo nacional de suas pretensões missionárias. Mediante intenso uso do rádio e de fartas promessas de cura divina, seus líderes conseguiram retirar sua religião do anonimato, reduzir sua introversão sectária e acelerar sua expansão. A partir da década de 80, o vertiginoso crescimento da corrente neopentecostal, encabeçada pela Igreja Universal do Reino de Deus, radicalizou a ocupação pentecostal da esfera pública, por meio de vultosos investimentos em rádio e tele-evangelismo e do ingresso na política partidária.
Foi no contexto da redemocratização do país e da arrancada da globalização que as igrejas evangélicas intensificaram a internacionalização de seu proselitismo, invertendo, assim, o sentido Norte-Sul do fluxo missionário e a velha condição do Brasil de campo de missões europeu e norte-americano. Investindo-se de autoridade moral e religiosa e de ardor salvacionista, arrogaram-se o direito de evangelizar os países ricos do hemisfério Norte e o restante do planeta.
Fazendo jus a suas ambições globalizantes, a Universal iniciou as primeiras missões no exterior em meados dos anos 80, começando por Estados Unidos (1986), Uruguai (1989), Portugal (1989) e Argentina (1990). Na época, Edir Macedo [líder da igreja] tinha a convicção de que Nova York, onde morava, era "o centro de todas as nações do mundo como Roma era no tempo de Jesus" e que de lá poderia formar um centro de evangelismo mundial, a partir do qual enviaria os imigrantes convertidos como missionários a seus países de origem para auxiliar na implantação da igreja. O projeto fracassou.
Foi somente a partir da década de 90, com o envio de levas de pastores e bispos brasileiros apoiados, a seguir, por estrangeiros elevados ao pastorado, que a denominação cresceu. Conseguiu fincar pé em toda a América Latina, na América do Norte, em boa parte da Europa e da África, em alguns países da Ásia e, por último, em certos lugares do Oriente Médio e da Oceania.

Racionalismo e magia
Comandada sempre por dirigentes brasileiros, sua expansão, no país e no exterior, apoia-se numa gestão eclesiástica centralizada e arrojada, num mix de racionalismo empresarial com arcaísmo mágico. Baseia-se também no controle de uma voraz máquina de arrecadação legitimada pela Teologia da Prosperidade, no evangelismo eletrônico, numa combatividade induzida por doutrinas da guerra espiritual e na oferta sistemática de mensagens e serviços mágico-religiosos adaptados ao contexto local e às demandas materiais e de atribuição de sentido de seus distintos públicos-alvo.
Nos templos, tece redes de sociabilidade, oferece apoio emocional, terapêutico e assistencial a fiéis e virtuais adeptos. E, diuturnamente, lhes promete prosperidade, libertação do sofrimento e solução divina para seus males afetivos, psíquicos, familiares, financeiros e de saúde, acalentando esperanças de ascensão social.
De modo obsessivo, aciona, a todo instante, discursos persecutórios e agonísticos referentes a discriminações e perseguições supostamente efetuadas por forças espirituais e agentes terrenos demoníacos contra a igreja e seus líderes, para desancar a concorrência e mobilizar os fiéis. Assim, tenta desqualificar as acusações externas, reforçar sua união, engajá-los na "obra" e enredá-los numa identidade religiosa sectária em prol dos interesses institucionais da denominação.
Resultado: em 2000, a Universal já estava em cerca de 80 países. Hoje, informa estar em 172. No conjunto, seu êxito no exterior é extraordinário. Sua atuação, porém, é rarefeita em muitos deles, sobretudo em países da Ásia, do Oriente Médio e da África com baixa presença cristã e com ampla maioria budista, hindu, judaica e muçulmana.
Nessas regiões, enfrenta árduas barreiras, como elevadas distâncias culturais e linguísticas, resistências fundamentalistas, restrições jurídicas e políticas à liberdade religiosa, ao pluralismo religioso, ao proselitismo e ao uso da mídia eletrônica.
O portal Arca Universal (www.arcauniversal.com) acusa o golpe, por exemplo, ao alertar que a igreja se instalou na Tanzânia "em meio a muita perseguição", que "não é fácil" evangelizar os russos com seus "hábitos comunistas", que vigora "grave intolerância religiosa" na Índia.

Fé e oferta
Na contramão da opção de muitas igrejas pelo evangelismo "subterrâneo" nos países mais fechados à prédica cristã, a Universal mantém-se inflexível no propósito de exportar sua pesada estrutura eclesiástica para onde quer que vá, o que se mostra contraproducente em muitos lugares. Por isso, na Ásia, obtém sua melhor performance no Japão, onde praticamente se limita a arrebanhar parte dos decasséguis brasileiros e latinos.
Na Europa, tem de lidar com a vigorosa secularização e com uma população majoritariamente refratária a assumir compromissos religiosos em moldes tradicionais. São desafios quase insuperáveis para uma igreja com fortes pendores sectários e cuja mensagem central enfatiza a polêmica fusão entre fé e oferta financeira e reatualiza crenças mágicas e rituais exorcistas cristãos.
Nesse contexto, suas estratégias e técnicas adaptativas, embora criativas e pragmáticas, tendem a se mostrar pouco eficazes. Daí sua forçosa opção pelo recrutamento de imigrantes brasileiros, latinos, lusófonos e africanos e demais grupos discriminados ou em situação de vulnerabilidade social.
A exceção mais notável a seu desempenho relativamente modesto na Europa é Portugal, onde dispõe de amplo número de templos e adeptos, rede de rádio, obras sociais e muitos pastores de origem local. Nesse país, a língua, a proximidade cultural e o robusto catolicismo popular facilitam seu proselitismo diante de imigrantes latinos e africanos e a portugueses do interior.
No continente africano, ao contrário, cresce muito. Seu desempenho se destaca nos países lusófonos, nos quais dispõe do suporte midiático da Rede Record, na Costa do Marfim e, em especial, na África do Sul, onde reúne centenas de milhares de fiéis em enormes templos lotados e cultos animados por danças nativas.
Expande-se na cola do avanço pentecostal no centro-sul do continente e, principalmente, à custa de igrejas cristãs e de religiões africanas tradicionais, cujas crenças em feitiçaria, bruxaria, espíritos malignos, sortilégios e amuletos são compartilhadas e, ao mesmo tempo, estrategicamente demonizadas pela Universal.
Na América do Norte, cresce moderadamente nos EUA, onde prioriza a atuação em cidades e Estados com maior presença de imigrantes brasileiros e hispânicos. No México, esmagadoramente católico e sob a onipresença da Virgem de Guadalupe, após permanecer uma década sob severas restrições jurídicas e ter dezenas de pastores expulsos, conseguiu legalizar sua situação e, nos últimos anos, deslanchar seu crescimento.
América do Sul e América Central, regiões onde o pentecostalismo mais cresce no mundo, constituem terrenos dos mais férteis para a Universal. No campo religioso, explora habilmente elementos simbólicos da difusa religiosidade popular, também mágica e taumatúrgica, e a relativa fragilidade institucional do catolicismo, historicamente pouco praticado e munido de poucos padres.
Nos planos jurídico e político, se beneficia de ampla liberdade religiosa e da consolidação do pluralismo religioso. Na esfera social, tira vantagem do desespero e dos anseios das massas pobres e excluídas pelo capitalismo flexível, vítimas preferenciais da violência que assola a região, da precarização do trabalho e das péssimas condições de vida nas periferias urbanas.

Futuro
Embora a marcha global da Igreja Universal esteja só no começo, certas tendências podem ser entrevistas. No exterior, está predisposta a enfrentar pleitos por autonomia e cismas de corte nacionalista. No médio prazo, nada permite supor que conseguirá alterar sua modesta performance na Ásia (a não ser uma improvável democratização da China) e na Europa. Da mesma forma, nos EUA deve manter-se restrita à disputa com igrejas pentecostais latino-americanas e com o catolicismo por hispânicos.
No continente africano, terá de pescar cada vez mais no aquário cristão e enfrentar aguerridas e eficientes igrejas pentecostais nativas. Haja vista que a proporção da população vinculada a religiões tradicionais, além de relativamente pequena, vem diminuindo. A isso se soma o fato de que nem cristianismo nem islamismo conseguem crescer significativamente à custa um do outro na África subsaariana, segundo recente pesquisa do Pew Research Center.
No Brasil e em outros países da América Latina, a pluralização do campo religioso, a explosão pentecostal e a crescente concorrência religiosa têm estimulado um paulatino processo de revigoramento comunitário e institucional do catolicismo. Tal reação tenderá a reduzir o espaço social e religioso de ação dos pentecostais nas próximas décadas e, por consequência, o tamanho e a velocidade de seu crescimento. Fenômeno que pode resultar também de uma diminuição prolongada da pobreza na região.
A expansão pentecostal e a emulação bem-sucedida do modelo de gestão e das técnicas e estratégias proselitistas da Universal -vide, entre outras, a Igreja Mundial do Poder de Deus- vêm recrudescendo a competição em seu nicho de mercado. Ambos tendem a saturá-lo e a impor limitações recíprocas aos concorrentes pelo recrutamento de novos adeptos.
Na hipótese de ocorrer uma rápida redução do número de novas adesões, a Universal se verá pressionada a efetuar mudanças em seu "modus operandi". Terá de equilibrar seu atual evangelismo de massas, focado na oferta de soluções mágicas pontuais e imediatistas, com a adoção de um modelo de associação religiosa mais comunitário, baseado em compromissos de longo prazo e na promessa enfática de salvação extramundana. Estes recursos são cruciais para reter duradouramente os fiéis, reduzir a clientela flutuante e torná-la uma igreja cristã mais convencional. Algo que, no alto de sua triunfante expansão global, ela não pretende ser.

RICARDO MARIANO é sociólogo, professor da Pontifícia Universidade Católica (RS) e autor de "Neopentecostais" (ed. Loyola).



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