São Paulo, domingo, 02 de julho de 2000


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Leia prefácio do crítico literário Antonio Candido ao diário hondurenho de Ruy Coelho, que será lançado neste mês pela Editora Perspectiva
Dias em Trujillo

Arquivo Pessoal
Sebastian e Lorenzo Tifre, dois moradores de Trujillo com quem Ruy Coelho conviveu


por Antonio Candido

Dias em Trujillo" é a tradução do diário de campo de Ruy Coelho, escrito em inglês durante a pesquisa que levou a cabo em Honduras, de outubro de 1947 a julho de 1948, a fim de colher material para a sua tese de doutorado na Universidade de Northwestern, defendida e aprovada em 1954. Um dos requisitos era que o pesquisador enviasse constantemente ao orientador o registro das atividades cotidianas: daí a formação de um texto como este. A tese, "The Black Carib of Honduras", traduzida para o português com o título "Os Karaib Negros de Honduras" e publicada em 1964, focaliza a forte unidade cultural do grupo estudado, que conseguiu fundir de maneira harmoniosa a herança das etnias africanas originárias com a indígena e a espanhola, de maneira a se poder falar, segundo Ruy Coelho, mais em síntese do que em sincretismo.
Os caraíbas negros descendem de africanos apresados nos séculos 16 e 17 e destinados à América, mas foragidos em consequência de naufrágios dos navios negreiros nas costas da Ilha de São Vicente, uma das Pequenas Antilhas, aos quais se juntaram escravos foragidos de ilhas próximas. Eles ocuparam parte de São Vicente, miscigenaram-se pouco com os habitantes, índios caraíbas, mas adotaram a sua língua e assimilaram muito dos seus costumes e crenças, a ponto de chegarem a se considerar descendentes deles. Daí a designação étnica.
Os caraíbas negros tiveram uma história agitada por tensões e conflitos armados com os colonizadores franceses e ingleses, conseguindo manter identidade e independência que os tornaram incômodos, de tal modo que os ingleses acabaram por deportar quase todos eles no fim do século 18 para a ilha de Roatan e o vizinho litoral do mar das Caraíbas, onde são hoje os países Belize, Guatemala e Honduras. Da vida anterior na ilha de São Vicente ficou em sua tradição uma idéia de paraíso perdido. Cristianizados na segunda metade do século 19, mantiveram contudo muito das crenças, sem que uma linha religiosa prejudicasse a outra, e com isso se destacaram pela fisionomia cultural própria. Em Honduras, quando Ruy Coelho os estudou, localizavam-se numa faixa estreita ao longo do litoral, em número de aproximadamente 20 mil, ou seja, menos de 2% da população do país, formada na maioria absoluta por índios e mestiços de índio e branco (1).
A pesquisa se desenvolveu na pequena cidade de Trujillo, que tivera momentos de maior importância, mas, no momento, era uma pequena aglomeração de 3.500 habitantes. O campo de trabalho foi escolhido por sugestão do orientador da tese em Northwestern, Melville J. Herskovits, especialista nos estudos afro-americanos. Ruy Coelho se ajustou bem na localidade e um dos aspectos interessantes do diário é o prestígio que adquiriu, a confiança e a estima que despertou pela sua personalidade aberta e a sua invariável polidez, além do saber notório. A comunidade se sentiu visivelmente honrada por ser objeto da atenção de alguém cujo valor pressentiu, e muitos lastimaram a partida de "Don Ruy".
Interessado basicamente na aculturação, ele deu realce ao estudo de suas consequências na vida mágico-religiosa, que entre os caraíbas negros é rica e cheia de aspectos interessantes. Para eles, a alma é tríplice, e, como uma das suas partes componentes pode permanecer algum tempo na terra depois da morte, há toda a sorte de relações entre o mundo natural e o sobrenatural, suscitando um culto dos mortos cujos ritos e práticas constituem fator poderoso de sociabilidade.
Ruy Coelho estudou tais relações não apenas analisando as práticas coletivas, mas procurando penetrar na mente dos indivíduos pela observação participante, a entrevista e o "test" de Rorschach, no qual se havia iniciado por sugestão de Irving Hallwell graças a um curso no Instituto Rorschach de Nova York em 1946. Em seguida pôde adquirir o tirocínio necessário como colaborador de Hallowell numa pesquisa entre os índios Ojibwa de Lac du Flambeau, no Estado de Wisconsin.
Ao longo do diário nós o vemos mencionar as aplicações do "test" e a receptividade variável das pessoas em relação a ele. Mas o interesse abrangia toda a cultura, que estudou com penetração, publicando resultados parciais, antes da tese, em estudos de relevo, sobre o conceito de alma, no "Journal de la Société des Américanistes"; sobre a couvade, em "Man"; sobre as festas, em "Anhembi". Na tese tudo isso se enraíza numa visão ampla, na qual predomina, todavia, o setor dedicado aos fenômenos mágico-religiosos.
O convívio com os habitantes lhe permitiu traçar o perfil de vários tipos humanos e compreender a dinâmica da comunidade, na qual acabou por se inserir, chegando não raro ao nível da confidência. Muito interessante sob este aspecto são as suas relações com o informante Sebastian, que ficou de certo modo a seu serviço, ou com a cozinheira Maria. A irmã desta, Lídia, que a substituiu durante algum tempo, moça bonita e inteligente, chegou a se abrir de maneira muito sincera sobre a sua vida afetiva, levando-nos a pensar que talvez estivesse executando pelo menos em parte uma espécie de manobra amavelmente sedutora em relação ao jovem pesquisador de 27 anos.
Na sucessão das entradas vamos percebendo como se acumulou o material que serviria de base para a análise e interpretação, aqui apenas esboçada: pequenas observações, tentativas malogradas, acasos, situações planejadas, inesperadas descobertas que surgem no fim de um caminho que parecia levar a outra parte. Ao mesmo tempo, vai ganhando contornos para nós o espaço físico e social: praia, regatos, árvores, bares, casa, reuniões. O leitor da tese de Ruy Coelho pode sentir aqui a fermentação da qual ela resultou, como sente no diário de campo de Malinovski o dia-a-dia por vezes penoso, mas sempre sugestivo, do qual emergiram mais tarde as obras notáveis sobre tantos aspectos da vida trobriandesa. Deste diário ressaltam a boa vontade, o equilíbrio e a tolerância do autor. Essa disposição básica serve de alicerce ao observador aberto e compreensivo, extremamente bem disposto em relação ao objeto, capaz por isso mesmo de penetrar no âmago da cultura e das pessoas. Por isso o diário é uma lição, um modelo para quem se dispuser a trabalhar sem preconceitos no universo das culturas alheias, dando realmente de si com rigor e desprendimento. O nosso diarista se comportou assim entre os caraíbas negros, e a propósito é eloquente certa comparação que faz da sua atitude com a de um colega que confiava demais nos caprichos da inspiração. Segundo Ruy Coelho, isso era "diferente da minha concepção de pesquisa sistemática, exercida dia-a-dia", e completa: "Quero saber sobre a variação dos costumes, como pessoas diferentes têm concepções diferentes, o grau de variabilidade, a existência ou não de uma estrutura oficial de conhecimento etc. Não há desculpa para não se explorar profundamente a cultura". Aí está, numa declaração breve, o pesquisador íntegro e tenaz, que talvez surpreenda quem, conhecendo-o superficialmente, ache contraditória essa atitude em relação ao ritmo não raro caprichoso de sua vida, quando não tinha pela frente uma tarefa obrigatória. Mas quem o conheceu bem não se surpreende ao vê-lo narrar como enfrentou toda a sorte de dificuldades, fez caminhadas extensas, percorreu picadas difíceis, levantou muitas vezes de madrugada -ele que, habitualmente, deitava e acordava muito tarde. E se menciono este pormenor é para dizer que tal hábito foi com certeza, ao contrário do que pode parecer, um dos fatores da sua enorme cultura, pois durante toda a vida aproveitou as horas mortas para ler, ler infatigavelmente, como ogre de livros que sempre foi. O diário mostra que o profundo intelectual, pouco dado aos exercícios físicos, cuja acentuada vocação sedentária se acomodava melhor na querência do gabinete de trabalho, podia ser também o investigador incansável que supera os comodismos e se ajusta aos mais difíceis requisitos da pesquisa. Na verdade, Ruy Coelho tinha um corte original e podia surpreender pelos contrastes, que no fundo nada mais eram do que projeção da sua personalidade complexa sob aparente placidez. Por exemplo: nunca desejou ter cargos nem se meteu na política universitária, no entanto acabou sendo diretor de nossa faculdade e a dirigiu muito bem num momento difícil. Outro exemplo: sob a brandura e a delicadeza que o caracterizavam, era muito firme, como demonstrou enfrentando os inquisidores ao ser preso no tempo da ditadura militar.

Conhecimento por prazer
O que também parecia contraditório era a curiosa relação que havia nele entre saber e publicar. Saber, saber muito, saber sobre os assuntos mais variados foi sempre a sua disposição fundamental. No entanto, parecia acumular conhecimentos e reflexões por mero prazer, e só os publicava quando havia solicitação externa: concurso, pedido de colaboração, homenagem a colega. Neste último caso, era o primeiro a entregar a matéria prometida e elaborada com o mais rigoroso cuidado. Por aí se vê que era o contrário de muitos que, na universidade, só lêem e investigam a fim de "fazer currículo" e, embora pouco ou nada tenham a dizer, acumulam implacavelmente material impresso.
O desprendimento de Ruy Coelho era tal que não se lembrava de dar os seus livros. Eu, que fui seu amigo desde o primeiro ano da faculdade e pela vida afora, com bastante convivência e confiança mútua, só recebi dele o pequeno volume publicado em 1944 pela editora Flama, reunindo o ensaio famoso e precoce sobre Marcel Proust e um outro sobre método crítico. Mais nada...
No entanto, adorava comunicar-se pela conversa e podia varar a noite falando de livros, autores, idéias, demonstrando sempre uma erudição surpreendente, como só vi igual em Sérgio Buarque de Holanda, com quem tinha afinidades, inclusive a variedade de informação, que ia da culinária, da heráldica e do romance policial até a lógica e a música renascentista. Por isso, nunca se preocupou em reunir os seus valiosos ensaios, e a publicação deste diário pode ser o começo de uma série de outros volumes, que dariam ao público a oportunidade de ler uma obra importante e pouco conhecida. Assim, a reserva e o desinteresse do autor seriam compensados por essa espécie de comemoração póstuma.



Nota:
1. Os dados sobre a história dos caraíbas negros foram extraídos da tese de Ruy Coelho.

Antonio Candido é crítico literário e professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. É autor, entre outros, de "Formação da Literatura Brasileira" e "Literatura e Sociedade".
O texto acima é o prefácio ao livro "Dias em Trujillo", que será lançado neste mês pela Editora Perspectiva.


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