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Leia a seguir trechos do diário de Ruy Coelho
"Dias em Trujillo", de que são reproduzidos a seguir alguns trechos, não foi escrito para ser publicado. Era uma exigência acadêmica da universidade norte-americana em que Ruy Coelho fazia seu doutorado. Feitos originalmente em inglês, os escritos eram enviados pelo pesquisador a seu orientador, nos EUA, regularmente. A maior parte do texto permanece inédita até hoje, exceto por um pequeno trecho, lançado pelo Memorial da América Latina em 1997, com o título de "Diário de Honduras". O volume "Dias em Trujillo" é o primeiro de uma séria de obras do autor (leia perfil na pág. 12), a ser publicada
pela Editora Perspectiva e pela Sociedade Científica de Estudos da Arte, que incluirá, entre outros, "Os Caraíbas Negros de Honduras".
outubro de 1947
DIA 26
Hoje descobri que perdi meu diário. A explicação
freudiana é evidente: resumi os dados contidos nele e
senti-me extremamente desapontado. Após ter enviado
a cópia pelo correio, talvez, na profundeza de meu inconsciente, eu pensasse que seria melhor me livrar daquelas escassas anotações. De agora em diante, vou datilografar meu diário com papel-carbono.
Hoje pela manhã estive em Cristales e fui até a casa de
Alfredo Miranda, lá encontrei Sebastian Tifre e Polo Lopez. Polo Lopez é ladino, mas nasceu em Aguán, onde,
naquele tempo, a única família de brancos era a sua. Ele
fala tanto o caraíba como o espanhol, casou-se com
uma moça caraíba e foi mais ou menos adotado pelo
grupo. Mais tarde duas pessoas juntaram-se a nós, Sabás Gotay e Pablo Sandoval. Sabás estava bêbado, embora fossem apenas 10h. Conversamos por algum tempo e, finalmente, paguei uma bebida para todos, depois
de um discurso feito por Sabás, que continha longas palavras, nem sempre bem empregadas, e que terminou
com o pedido de uma bebida.
Depois Sebastian, Miranda, Polo e eu fomos a pé até
Rio Grande para um passeio. Miranda tinha uma "tarraia" e usou-a umas quatro ou cinco vezes com resultados negativos. Conversamos sobre a alegria e as representações com máscaras durante a época natalina, sobre pequenas criaturas do mar e sobre a "sucia" (1). À
tarde fui ver um baile na casa da comunidade. Estavam
tocando marimbas e dançavam rumbas, boleros, valsas
e "jitterbugged" (2). Era quase igual à dança "ladina".
Começou às 14h e terminou às 17h.
1.Espíritos femininos que atormentam rapazes sozinhos sob a forma
de suas amadas.
2. Tipo de dança jazzística com gestos muito rápidos.
DIA 29
Trabalhei pouco hoje. Pela manhã fui com Sebastian
à praia, por onde perambulamos um pouco e, finalmente, ficamos conversando com um grupo de pescadores. Sei o nome só de um deles, Marin. Dirigi a conversa para assuntos sobrenaturais, mas nada consegui; falamos principalmente sobre Boris Karloff, Bela
Lugosi e seus filmes. Eles adoram filmes de terror e falam sobre isso com tanta satisfação que nada poderia
levá-los a outro assunto. Não estou decepcionado, pelo que sei devo esperar muitos dias iguais a este. Preciso ser filosófico como um pescador que ouvi dias atrás
dizer: "O que posso fazer? Aqueles peixes velhacos não
querem morder a isca!".
Um pequeno boato que ouvi hoje: parece que o principal motivo da partida repentina do meu jovem amigo introspectivo e estudioso Teófilo Martinez não foi
ele estar farto da vida rigorosa que o velho Martinez
impõe à sua família. Parece que o tímido e reservado
rapaz deixou uma moça com problemas e a família
dela ameaçou processá-lo, um procedimento um tanto quanto fora do comum por esses lados. Ele provavelmente estava mais assustado com a atitude de seu
avô do que com o hipotético processo. Ele está voltando para Trujillo, visto que o inspetor da escola o chamou; não se demitiu e deve continuar no cargo como
professor. Dizem que provavelmente ele voltará e tudo será arranjado para a satisfação de todos. Eu perguntei se ele irá se casar com a moça, e a resposta foi
que provavelmente não.
À tarde veio Maria, a moça que vai cozinhar para
mim. Passamos a maior parte da tarde fazendo listas
de coisas para comprar e conferindo-as na chegada. A
casa estava um tumulto: Sebastian, Maria, América
(cozinheira do juiz Alvarado) e o rapaz do armazém
do Glynn que trouxe as compras e as colocava no lugar
rindo e, principalmente, falando fluentemente em caraíba e espanhol. Maria pareceu-me enérgica e dominadora; ela queria uma menina sob seu comando para
levar recados. Eu lhe disse que não era necessário, visto que Sebastian estava sempre pelos arredores da casa e poderia fazer isso muito bem. Ela não gostou da
sugestão: "Ele é um homem adulto, não fará o que eu
quero. Como espera que eu consiga dominá-lo?". O
verbo dominar já tinha sido usado também por Sebastian quando conversávamos sobre os meios mágicos
que uma mulher tem para submeter o marido à sua
vontade.
DIA 30
Hoje Maria veio cozinhar para mim pela primeira vez.
Logo nesse primeiro dia, ela se ressentiu da presença de
Sebastian e reclamou de uma suposta tendência dele
em interferir nas coisas da cozinha. Penso que o pobre
Sebastian é totalmente inocente dessa intenção. Quando ela encontrou todas as panelas arrumadas na cozinha, berrou: "Quem é o maricas que está fazendo serviço de mulher?" (a palavra que ela usou foi "maricón",
em inglês "sissy", que está mais perto do sentido britânico que do americano). Eu respondi: "Fui eu, Maria".
Ela levou sua mão à boca e riu. Não ficou nada embaraçada. Disse: "Eu pensei que fosse Sebastian". Ela cozinha muito bem, mas serviu-me pratos ladinos: feijão,
arroz, costeletas, bananas fritas, batatas, doce de leite,
ou melhor, "dulce de leche". Ela não acredita que eu a
quero para cozinhar principalmente a comida típica caraíba.
Sobraram-me apenas US$ 20 e muitas dívidas. Estou
preocupado com o cheque que não chega. Lembro-me
de quando a universidade não pagou minha bolsa de
estudos por mais de dois meses. Espero que o pagamento chegue logo.
Conversei com Sebastian sobre reencarnação, tabus
alimentares, morte sobrenatural causada pela fúria dos
espíritos, as comemorações de 2 de novembro no culto
aos mortos; houve um parênteses e Sebastian falou-me
sobre seus projetos "matrimoniais"; depois falamos sobre velórios e as histórias que se contam neles. Não está
muito claro se Juan Lagarto conta histórias d'"As Mil e
Uma Noites" com músicas segundo o estilo africano.
Seria um caso curioso de transculturação.
DIA 31
Pedi a Sebastian que me contasse as histórias que geralmente se contam em velórios. Ele concordou prontamente e começou a contar uma delas, mas não conseguia se lembrar muito bem, tentou outras duas com
o mesmo resultado. Disse-lhe que, mesmo assim, eu
iria tomar notas e que, talvez, falando lentamente e
com todos os detalhes, ele conseguisse se lembrar. Ele
contou-me outra vez, com mais detalhes, a história do
irmão e da irmã que foram ajudados pelo bútio (1), e
bem ao estilo de Pedro Álvarez: cantou a canção, imitou o bútio no seu vôo e recorreu à ação quando os
eventos dramáticos da história assim o requeriam,
mas não conseguiu lembrar o final da história. Disse
que vai perguntar para o Alfredo Miranda e amanhã
me contará. Eu estava interessado no papel atribuído à
aranha naquela história e perguntei qual era a palavra
em caraíba correspondente a aranha. Ele disse a palavra e não vi nenhum elo familiar. Mesmo assim, insisti
e perguntei se a palavra "anansi" tinha algum significado para ele. Respondeu-me que em caraíba eles chamam de "anasi" (2) o rapaz esperto, "mas aquele que é
muito esperto e confunde os outros com suas palavras".
Pedi-lhe para me contar alguns provérbios e ele não
conseguiu se lembrar de nenhum. Após algum esforço
disse: "Bem, aqui está um. O bútio disse para a formiga de maneira desdenhosa: "Ínfima criatura! Toda sua
vida você vive imersa na lama enquanto eu vôo entre
as nuvens!". A formiga respondeu: "Sim, mas um dia
você cairá e eu encherei meu travesseiro com suas penas e farei minha casa com seus ossos". Isso significa
que aquele que está em posições mais altas está mais
exposto aos perigos e que é preferível ter uma vida
obscura, porém segura". Ele tentou se lembrar de outros provérbios, mas não conseguiu. "Não entendo o
que está acontecendo comigo hoje. Quando eu vou
com Miranda para o mar, estamos sempre contando
piadas e provérbios." Decidimos parar de trabalhar e
saímos. Eu também não me sinto bem hoje. Sebastian
atribui isso à mudança da lua. Mais tarde ele me deu
outra explicação: seu pai morreu há quase um mês e
agora seu corpo deve estar se decompondo. Aqui há
uma crença comum de que, nessa fase, os parentes
próximos da pessoa que morreu sentem como se houvesse uma dissolução em seus próprios corpos. "Nada
realmente sério, nada que não possa ser curado com
um bom drinque."
Notas:
1. Falcão de aproximadamente 60 cm de comprimento que voa em
grandes altitudes. Possui asas grandes e cauda larga. (N. de R.)
2. Foi mantida a variação de grafia que existe no original.
dezembro
DIA 25
Pela manhã fiz uma viagem de jipe durante duas horas até Puerto Castilha. Deve ter sido uma linda cidadezinha no seu apogeu. Quebra o coração vê-la assim,
caindo aos pedaços. O porto é o melhor que vi em Honduras, diz-se que também o hospital foi o melhor do
país e, agora, os quartos de baixo são usados, às vezes,
como estábulo para cavalos. A população atual é de um
décimo do que foi, composta exclusivamente por trabalhadores mais pobres que não tiveram meios para mudar quando a Company (United Fruyt Co.) foi embora.
Alguns americanos negociantes de madeira serrada ou
de coco deixaram a cidade. Um quadro de ruínas e desolação reavivado pelo contraste dos belos arredores,
no esplendor de uma brilhante manhã tropical.
À tarde datilografei minhas últimas notas. Também
conversei com Maria a respeito da eterna questão das
almas. Maria identificou primeiramente "áfurugu"
com o anjo da guarda; ela nunca tinha ouvido a palavra
"viejamota" que é usada por Pancha como sinônimo de
"áfurugu". Mas, quando perguntei: "Áfurugu não é a
mesma coisa que iuani?". "É." "Mas iuani não é a alma?"
Após pensar por um momento: "É.". "Então, alma é o
mesmo que anjo da guarda?" Hesitando: "É, suponho
que Deus envie para nós somente um espírito, não é?
Por que não pergunta ao compadre Siti? Ele é quem sabe dessas coisas". "Conversei com ele sobre esse assunto, mas gosto de ter a opinião de várias pessoas diferentes." "Veja, dom Ruy, é assim: quando o senhor fala comigo sobre áfurugu e iuani, essas são palavras em moreno e eu sei o significado delas em moreno. Mas o senhor não pode traduzi-las para o espanhol. Há muitas
palavras em nosso dialeto que não podem ser traduzidas para o espanhol." Eu não queria deixá-la embaraçada e por isso parei com meu interrogatório. Mas em um
ponto Maria tem razão: muitas pessoas mantêm seus
conceitos católicos espanhóis dissociados de seus conceitos caraíbas do culto gubida. Encontrei diferentes
formas de fusão e diferentes graus de sistematização.
Experimentalmente, poderiam ser divididos assim:
Escola de pensamento de Siti e Sebastian
O áfurugu e a iuani são duas partes distintas da mesma
entidade e essa entidade corresponde ao conceito cristão de alma. O iuani é pouco mais do que um princípio
vital, supondo-se estar permanentemente ligada ao corpo, somente o abandonando no momento da morte.
Por outro lado, o áfurugu é mais rico, semi-independente do corpo, perambula em sonhos, tem poderes de
percepção mais refinados do que o corpo mortal e pode
alertar o indivíduo dos perigos ocultos, especialmente
aquele de natureza espiritual. Mas suas relações com o
corpo são muito próximas e é possível ferir seriamente
um inimigo, atacando seu áfurugu.
Isso é especialmente verdadeiro nos casos de feiticeiros que podem invocar o áfurugu de uma pessoa viva
em um recipiente com água e agir sobre ele. "Mafias"
podem também se apoderar do áfurugu, matando assim a pessoa. Após a morte a iuani fica totalmente entregue à Igreja Católica e vai para o céu cristão. O áfurugu permanece na casa até completar os nove dias da novena e pode, então, transformar-se em "ufie" ou, se for
o caso de uma alma atormentada, em "ábari" até que,
com o passar dos anos, é colocado na categoria mais geral e vaga dos "gubida". É desnecessário enfatizar o papel desempenhado pela racionalização e pelo esforço
consciente nessa explicação.
Escola de pensamento de Pancha
O áfurugu,
também identificado pela misteriosa palavra viejamota,
é o anjo da guarda e iuani é a alma. Pancha encontrou
forte oposição e foi solicitado a ela explicar como o anjo
da guarda poderia ter uma relação tão próxima com o
corpo de alguém, de forma que, quando se fere um, o
outro também é ferido. Para as pessoas mais velhas, anjo da guarda é pouco mais do que uma figura de retórica
em um sermão de domingo, ou, na melhor das hipóteses, alguém voando muito alto e não tendo mais interesse pelos assuntos mundanos do que um coro de tragédia grega. Não pode ser o áfurugu um interventor ativo
e apaixonado.
Os sombristas
O áfurugu é a sombra, mas pode
também ser um retrato ou qualquer outra representação da pessoa. Esse é um esforço para compreender como um feitiço pode produzir em uma pessoa efeitos de
toda espécie, agindo sobre suas imagens.
O grupo discrético
Entendo por discretismo aqui
a simples aceitação de diferentes conceitos provenientes de diferentes origens como coexistentes, mas não
coincidentes. Há a alma cristão e há o áfurugu ou a iuani
caraíba, e deixe o compadre Siti se preocupar com "qual
é qual" e "o que é o quê". Eu chamo a isso de discrético,
em oposição ao sincretismo de outros. Fico pensando
se esse grupo não é o mais numeroso, sendo que Maria
foi a única a expressar essa opinião, pois ela se sente
mais à vontade comigo e não precisa fingir para me impressionar com a sua capacidade intelectual.
maio de 1948
DIA 9
Passei o dia todo lendo minhas anotações e refletindo
sobre elas, minha ocupação costumeira dos domingos.
Tentei avaliar o que já fiz até agora e o que devo fazer no
futuro próximo.
Até agora tenho tido bastante sorte. Consegui me
manter totalmente à parte da sociedade ladina, sem ser
julgado como grosseiro. Ignorei completamente as intrigas políticas, assim como as brigas locais mesquinhas
entre o inspetor da escola e o prefeito que terminaram
com a demissão de um, logo seguida pela demissão do
outro. Na verdade, nem mesmo mencionei esses fatos
no meu diário. Tive de usar toda a minha habilidade para evitar uma briga doméstica mortal, mas mantive o
controle da situação.
Consegui também evitar ser identificado como integrante de qualquer grupo, família ou roda. Falhei em
obter a colaboração de dois informantes que, acredito,
poderiam me fornecer excelente material, Pedro Moreira e Baldomero Lopez, embora não tenha sido culpa
minha. Ambos sumiram. Pedro Moreira não apareceu
na cidade durante os últimos três meses, nem mesmo
para a Semana Santa, o que foi criticado por todos. Sua
posição religiosa está se tornando cada vez mais pessoal
e o padre Pedro acusa-o abertamente de heresia. Como
resultado, ele se sentiu ofendido e ferido em seu orgulho
e recolheu-se à solidão, como um asceta da Antiguidade. Não tenho ouvido falar de Baldomero há muito
tempo. Só sei que não está na cidade e que, ultimamente, não tem sido visto pelos arredores.
Creio que cheguei a uma clara compreensão de como
funciona a família e os principais pontos do sistema religioso. Sei que está longe de ser uma visão completa,
mas consigo manter uma conversa com qualquer
"búiei" e formular perguntas inteligentes. Com relação
a esses dois aspectos, assim como em assuntos econômicos, sinto que o principal trabalho foi feito. Vou tentar documentá-lo com estatísticas feitas com a comunidade em geral, suprindo suas deficiências, que suspeito
serem numerosas, com observações e suposições pessoais. Enquanto aplico o Rorschach, posso observar as
casas nas quais entro sob esse pretexto (na realidade
não é um pretexto) e fazer algum tipo de inventário.
Posso treinar Sebastian para fazer o mesmo e, posteriormente, podemos comparar as notas. Agora sei os
preços das principais coisas compradas e vendidas nos
arredores e não será difícil, talvez, chegar a uma noção
da situação econômica da casa, sendo complementada
pelos boatos, naturalmente. Tentarei obter, também,
mais dados sobre a agricultura, sob o ponto de vista
econômico. Quanto representa em dinheiro uma safra
de iúca? Qual é a parte consumida pelo produtor e qual
é a parte vendida? E assim por diante.
Acho que negligenciei a parte católica da vida religiosa, que sei ser muito importante, especialmente na vida
das mulheres. O que são as sociedades religiosas das
mulheres? E a dos homens? Como a participação nessas
sociedades é usada para controlar o culto "gubida"?
Com que frequência os homens e as mulheres fazem a
confissão? Comungam? Até que ponto vai a influência e
a autoridade do padre?
Gostaria de saber se o censo neste país leva em conta
as profissões. Há dados sobre o número de "estancos" e
"pulperías" em Trujillo? Na minha ida a Tegucigalpa,
na próxima semana, posso verificar isso.
Devo obter dados também sobre os órgãos públicos,
que os dirige, eleições e organização da municipalidade
em geral. Ou talvez seja melhor deixar isso de lado devido às circunstâncias... Mas posso, sem me arriscar, conseguir dados sobre a "comunidad", os quais são tão frequentemente mencionados que me acostumei a tomá-los por certos. E há todo o universo da educação que
quase não abordei. E os Rorschachs que devem ser aplicados e datilografados. Vejo com apreensão os meses
que vêm pela frente...
Estava me esquecendo das histórias de vida. Acho que
terei muitas sessões com Felix Moreira na próxima semana. Quando sentir que não posso ir mais adiante
com ele, iniciarei a história de Maria. Suponho que isso
seja o suficiente para manter-me longe de encrencas,
por enquanto.
junho
DIA 9
Estava procurando alguma coisa nas minhas notas e
achei a lista de termos de parentesco coletados por Sebastian. Eu não estava satisfeito com essa lista; embora
soubesse que Taylor tem excelentes e extensos dados
sobre o assunto, incomodava-me deixá-la assim. Por
essa razão, fiz uma outra lista de palavras, em espanhol,
tão completa quanto pude, e trabalhei com Lydia nisso.
Sebastian veio e eu lhe pedi para conferir as palavras.
Como consequência disso, tivemos uma conversa sobre
a instituição do compadrio, suas implicações e seu funcionamento.
Eu tinha observado e anotei há algum tempo que é
considerada falta de educação entrar na casa por uma
porta e sair por outra. A mesma crença existe também
no Brasil, portanto, eu dei isso como certo. Mas ultimamente ando possuído por uma fúria cartesiana de tudo
questionar e perguntei a Sebastian o motivo e e ele não
soube me responder. Hoje veio com a solução do problema. De acordo com sua mãe, uma pessoa que entra
em uma casa por uma porta e sai por outra pode livrar-se dessa maneira de um espírito que a estava seguindo.
Se a pessoa não tem nenhum espírito a seguindo e age
assim, um espírito deixado na casa por outra pessoa pode se prender a ela. Portanto é perigoso para quem costuma fazer isso também.
É lógico que a melhor coisa é não fazê-lo; mas, se alguém for obrigado a sair por outra porta, em uma casa
estranha, deve parar na soleira da porta por um minuto
e, enquanto se despede, sacudir o fundilho das calças ou
a camisa às escondidas. Então sair rapidamente, e o espírito permanecerá na casa.
As pessoas que moram na casa têm defesas contra isso. Se elas notaram algo de estranho no comportamento do visitante, tão logo ele esteja a uma distância que
não possa ouvir, a proprietária da casa dirá em voz alta
três vezes: "Baiba lárigi babúreme!", "siga seu dono!".
Às vezes, ela pega a vassoura e pontua a exclamação
com três batidas na soleira da porta de entrada e três
mais na soleira da porta de saída. Isso é feito para espantar as coisas ruins. "Essa coisa má é sempre um espírito"? "Sim, é o que minha mãe disse." Eu achava que
uma pessoa pudesse deixar o "udabadu" em uma casa
dessa maneira, mas parece que somente espíritos.
Um capítulo da crônica de Cristales contado por Sebastian hoje. Isidoro Cacho teve durante toda a vida
muitos problemas com Amancio Lopez, que é filho de
sua "querida" com outro homem e que ele ajudou a
criar. Amancio Lopez é um tipo inútil e, agora que está
com 28 anos, continua inútil e, quando ele se cansa de
ser inútil, faz algumas travessuras, apenas para passar o
tempo. Desde criança, Isidoro tentou de tudo sem resultado e parece que Amancio tem sido particularmente detestável ultimamente. Ontem, Isidoro chamou
Amancio e pediu-lhe que levasse uma carta ao chefe da
polícia. Assim, ele foi à polícia e disse: "Coronel, aqui está uma carta enviada por meu pai e ele me disse para esperar pela resposta". O coronel leu a carta na qual Isidoro pedia-lhe para prender Amancio e deixá-lo em uma
boa cela fria por algum tempo. Ele acabou de ler a carta,
olhou para Amancio e gritou para seus soldados: "Levem este homem e coloquem-no na "bartolina!'" (solitária). Essa história é motivo de risos de todo o bairro.
Dois pontos emergem dessa anedota. Um é um conceito de "patria potestas" semelhante ao da velha lei romana; o pai exerce uma autoridade sobre o filho até à
morte. É evidente que isso não é claramente expresso,
mas é sancionado pelo costume. Espera-se que a autoridade dos pais sobre a filha, principalmente em assuntos
de conduta sexual, seja interrompida somente com a
morte. Esse é o padrão ideal, mas, com maior ou menor
flexibilidade, ainda é imposto na prática. Recordo o caso de Sebastian cortejando uma moça de 23 anos; como
a moça foi proibida de vê-lo durante algum tempo e desobedeceu a ordem, foi surrada por sua mãe.
Outro ponto que pude verificar também pelas histórias sobre mau comportamento sexual das moças é o
papel das autoridades em geral e, em particular, o da
polícia. A autoridade não é indiferente, imparcial, acima dos interesses dos simples cidadãos, como é suposto
ser em nossa própria cultura. Isidoro Cacho, sendo irmão de um deputado suplente, tem influência nas esferas oficiais; isso lhe dá o direito de usar a polícia com objetivos inteiramente particulares, tais como controlar
um filho rebelde. Todos acham muito natural. Não há
nenhuma concepção de dicotomia entre funções públicas e o homem que as ocupa, entre interesses públicos e
interesses privados. Patriarcalismo ibérico, diria Gilberto Freyre... Tenho certeza de que não é só ibérico e,
quanto ao patriarcalismo, o conceito deveria ser tão
cortado para se ajustar às condições daqui, que prefiro
não usá-lo.
Foi curioso observar as reações públicas a esse acontecimento. Em primeiro lugar, foi considerado muito divertido. Não há nada que divirta mais um caraíba do
que uma demonstração de astúcia, uma intriga bem-sucedida. Isidoro Cacho é considerado um velho astuto
e ninguém o censura por isso. Com relação a Amancio
Lopes, seus delitos não lhe causaram a perda do status,
mas cair em uma cilada dessa forma, sim. O alto apreço
dado à opinião pública entre os caraíbas é de natureza
que eu não hesitaria em dizer que se prefere qualquer
outra forma de vergonha do que ser exposto ao ridículo
em público. Isso é confirmado por outros fatos e e opiniões que tenho em minhas anotações.
Traduções de Sylvia H.L. Takeda e Sonia I.F. Lobo.
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