São Paulo, domingo, 02 de julho de 2000


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O filósofo Richard Rorty comenta "Pecado Papal", obra recém-lançada nos EUA que faz um indiciamento irrestrito e devastador da atuação dos líderes católicos
A autoridade dos papas

Richard Rorty
especial para "The NYT Book Review"

A maioria das grandes organizações possui procedimentos por meio dos quais pode repudiar os atos de um executivo-chefe que tenha tomado decisões autocráticas e desastrosas. A igreja Católica Romana também os possui, em tese -tem um Conselho Geral autorizado a modificar doutrinas ou políticas do governo. Mas nos últimos dois ou três séculos a intimidação papal reduziu os conselhos à impotência. Assim, os católicos que, como Gary Wills, acham que o papado está envergonhando a igreja, não têm a quem recorrer, a não ser aos colegas de congregação. Wills, historiador eminente e um dos mais intelectualmente respeitados membros do laicato católico nos Estados Unidos, escreveu um livro que é um indiciamento devastador e irrestrito dos papas. Na primeira parte de "Papal Sin" (Pecado Papal) -"Desonestidades Históricas"-, ele mostra como a hierarquia eclesiástica tem mentido e se esquivado de maneira constante quanto ao que a igreja fez ou deixou de fazer durante o Holocausto. A segunda parte -"Desonestidades Doutrinais"- argumenta que os papas recentes viraram leninistas: passaram a preocupar-se mais em conservar seu domínio e autoridade do que em atender às necessidades daqueles a quem afirmam servir. Nas duas últimas partes do livro -"A Questão da Honestidade" e "O Esplendor da Verdade"-, Wills escreve sobre seus heróis: lorde Acton, o cardeal Newman e Santo Agostinho, oferecendo-os como exemplos a quem a igreja poderia se voltar para escapar das orwellianas "estruturas de falsidade" hoje embutidas na prática pontifical.

Crime horrendo
Em 1864, Pio 9º denunciou aqueles que ousavam afirmar que "o pontífice romano pode e deve se reconciliar com e aceitar o progresso, o liberalismo e a civilização moderna". Lorde Acton -como Wills, historiador respeitado e acadêmico perfeitamente capaz de fazer frente aos teólogos do Vaticano no próprio território deles- percebeu que o papa estava conferindo uma imagem ridícula ao catolicismo. Assim, fez tudo que pôde para persuadir o concílio Vaticano Primeiro a não dar a Pio 9º o que ele mais queria: a ratificação da doutrina da infalibilidade papal. Acton perdeu a batalha, mas apenas depois de Pio 9º ter utilizado todos os truques do repertório eclesiástico para obrigar os sacerdotes do concílio a seguir a linha traçada por ele. Wills afirma que Pio 9º é "uma presença no Vaticano até hoje". A falsidade e arrogância papais são ilustradas de maneira mais vívida, para Wills, pelo fato de Paulo 6º ter retirado a questão do controle de natalidade das mãos do concílio Vaticano Segundo. Paulo 6º, diz ele, se apavorou diante da possibilidade de os clérigos do concílio repudiarem os pronunciamentos contrários à contracepção feitos por Pio 11, que, em 1930, anunciara a visão descrita por Monty Python como aquela segundo a qual "todo espermatozóide é sagrado" ("a Divina Majestade", escrevera Pio 11, "vê com o maior repúdio possível esse crime horrendo" -ou seja, o homem derramar suas sementes no chão ou dentro de uma camisinha). Assim, Paulo 6º decidiu que seria melhor dificultar a vida de gerações futuras de católicos do que permitir que o concílio admitisse que um seu antecessor tinha cometido um engano. Wills diz que o "Humanae Vitae", a encíclica lançada por Paulo 6º em 1968 na qual ele reafirma a proibição da contracepção, "não diz respeito ao sexo, na realidade. Diz respeito à autoridade. Paulo 6º decidiu a questão com base exclusivamente nisso". Wills utiliza esse episódio para chegar ao ponto mais importante que quer deixar claro: "Agora pedem que aceitemos que apenas o papa, e mais ninguém, seja autorizado a dizer aos cristãos como eles devem viver... O Espírito Santo agora fala com apenas uma pessoa na Terra, o onicompetente chefe da igreja, igreja essa que é toda cabeça, sem membros. Se fosse assim, o corpo de Cristo teria sido vergonhosamente reduzido". Mas ele tem muitos outros exemplos de desonestidade a dar: interpretações distorcidas das Escrituras, distorções manifestas e não disfarçadas da história eclesiástica, infindáveis queixas hipócritas e mentiras puras e simples. Ele é espantosamente franco sobre questões que a maioria dos escritores católicos evita, como quando escreve: "Na verdade, a admissão de homens e mulheres casados ao sacerdócio -que não poderá deixar de ser aceita algum dia, de qualquer maneira- pode muito bem terminar por ser aceita pelos motivos errados, não porque as mulheres e a comunidade o mereçam, mas em razão do pânico gerado pela percepção de que o sacerdócio está se tornando predominantemente gay". Ele é igualmente franco e sem meias palavras quando se refere ao papa atual, que descreve nos mesmos tipos de termos usados por Acton com referência a Pio 11: "O restante da igreja é obrigado a viver em estruturas de falsidade porque esse homem isolado se mantém fiel a sua visão intensamente pessoal".

Tirania papal
Seria concebível que um autor não-católico tivesse redigido os primeiros 15 capítulos do livro de Wills -aqueles que retiram pedras para jogar luz no que se esconde debaixo delas, revelando prelados, acobertando desesperadamente acobertamentos anteriores. Mas apenas alguém que está envolvido na história da igreja e que participa regularmente da missa católica poderia ter escrito os últimos seis capítulos. Nestes, Wills pede a seus colegas católicos que não apenas derrubem a tirania papal, mas também renunciem à convicção de que sua igreja guarda as chaves do paraíso.
Wills vê como totalmente inválida a doutrina da sucessão apostólica, que afirma que Roma, mas não Canterbury ou Salt Lake City, pode suprir os sacerdotes que herdam dos apóstolos o poder de transubstanciar os elementos da eucaristia, com isso oferecendo aos fiéis a possibilidade de consumir o próprio corpo e sangue de Cristo. Ele preferiria que a teoria da transubstanciação nunca tivesse sido imaginada e que padres e bispos ainda fossem escolhidos pelas comunidades de fiéis (como eram na época de Agostinho), em lugar de serem indicados pelo departamento de pessoal da cúria. A igreja dos sonhos de Wills "não restringiria o sacerdócio aos padres, os magos da transformação eucarística. Não preferiria privar comunidades inteiras de seus sacerdotes a relaxar um código de celibato que nunca foi imposto aos apóstolos".
Num capítulo que o cardeal Joseph Ratzinger e outros dinossauros do Vaticano verão como o auge da irreverência e do desrespeito, Wills deplora o culto da Virgem. Ele sugere que os católicos localizem o elemento feminino do divino na Terceira Pessoa da Santíssima Trindade, à qual se refere como "ela" em lugar de "it", o pronome sem gênero no inglês.
Muitos católicos que não se pautam pelas idéias de Ratzinger podem achar essa idéia exagerada. Apesar disso, podem espantar-se com o que Wills tem a lhes dizer sobre a ausência da maior parte da doutrina católica contemporânea (incluindo a mariologia) das Escrituras e das crenças dos fiéis nos primeiros quatro séculos depois de Cristo -espantar-se tanto quanto se espantaram os católicos dos tempos de Lutero ao ouvir algumas dessas mesmas coisas. Mas Lutero não teve nenhum desejo de dividir a igreja, e Wills tampouco. Ele anseia por reformas internas, não por um cisma. Quer que o próximo papa seja Gorbatchov, contra o Lênin de Pio 11. Wills leva completamente a sério o texto (João 14:6) que afirma que Cristo é verdade. Ele louva Agostinho, que qualifica como o teólogo que mais bem compreendeu e explicou essa afirmativa, e o toma como autoridade que fundamenta a visão de que "o novo pecado papal, o pecado do logro, é pior do que os pecados antigos e mais vívidos da cobiça material, da ambição soberba ou da licenciosidade sexual. Trata-se de um pecado espiritual, da frustração interior do acesso do Espírito à alma". Mas talvez tivesse mais dificuldade em conseguir a concordância de Agostinho quando diz: "Acho que minha igreja não detém o monopólio do Espírito, que respira onde Ela quer, em cada seita e igreja cristã. Na verdade, Ela respira em toda a vida religiosa, onde quer que seja que se dê ouvidos ao chamado da religião, entre judeus, budistas, muçulmanos e outros". Essa é a linguagem do século 19 de Acton, não do século 4º de Agostinho.

Igreja livre e democrática
Wills é um historiador da liberdade americana cujos escritos infundiram nova vida às palavras de Jefferson e Lincoln. Como já se poderia prever, ele quer uma Igreja Católica livre e democrática, uma igreja que não tenha tempo para sair à caça de heresias e na qual o papa faça jus ao título antigo de "servo dos servos de Deus". No entanto Agostinho passou muito tempo detectando e denunciando heresias, e a mesma coisa terá que ser feita por qualquer instituição que quiser reivindicar para si uma ligação especial e privilegiada com o divino.
Se Deus realmente é generoso o suficiente para reconhecer que judeus e budistas dão ouvidos a seu chamado, então não está claro por que precisamos de uma igreja de Cristo. Mas, se de fato precisarmos dela, então ela irá excluir além de incluir, e a caça às heresias vai continuar sendo uma estratégia de exclusão inelutável.
A visão tradicional da igreja tem sido a de que Deus não é tão generoso assim e que os cristãos precisam acreditar que os apóstolos de Cristo e seus sucessores autorizados -mas não os de Joseph Smith, de Buda ou de Maomé- proporcionam os meios necessários à salvação. Agostinho teria concordado com isso, para melhor ou para pior. Wills não concorda. O momento de sua polêmica esplendidamente apaixonada o deixa frente a frente com a pergunta: uma igreja de Cristo idealmente honesta e livre ainda seria uma igreja?



Papal Sin
326 págs., US$ 25 de Garry Wills. Doubleday (Estados Unidos).


Onde encomendar
Em SP, na livraria Cultura (tel. 0/xx/11/ 285-4033), e, no RJ, na livraria Leonardo da Vinci (tel. 0/xx/21/533-2237).



Richard Rorty é filósofo americano e professor na Universidade de Stanford. É autor, entre outros, de "Para Realizar a América" (DP&A), e "Ensaios sobre Heidegger e Outros" (Relume-Dumará).
Tradução de Clara Allain.


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