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O escritor cubano Senel Paz, autor do roteiro do filme "Morango e Chocolate", critica a falta de liberdade sexual e religiosa em seus país, mas rejeita os ataques ao regime socialista
Intolerância universal
Angélica Torres
especial para a Folha
O escritor Senel Paz ainda está para
ser descoberto no Brasil, assim como toda a literatura cubana. De sua produção, foi publicado no país apenas o
conto "Sob o Salgueiro" (em "A Ilha
Contada - O Conto Contemporâneo em
Cuba", Ed. Página Viva, 1997), extraído
de seu primeiro livro, "El Niño Aquel"
(1980), que marcou o nascimento de
uma nova geração de escritores da ilha.
Senel Paz, 50, chegou com força ao cenário literário cubano no final dos anos
70. Em 1990, quando recebeu na França
o Prêmio Juan Rulfo pelo conto "O Lobo,
o Bosque e o Novo Homem", o escritor já
estava consagrado em Cuba com o Prêmio da Crítica (1980), e dois filmes haviam sido realizados a partir de roteiros
seus: "Uma Noiva para David" (1985) e
"O Amor Se Acaba" (1989). O reconhecimento internacional, no entanto, veio
com o roteiro de "Morango e Chocolate"
("Fresa y Chocolate", 1993), escrito a
partir de "O Lobo...". A história fez enorme sucesso, dentro e fora de Cuba, adaptada também para o teatro. Na entrevista
abaixo, o escritor fala sobre o conto e o
filme como panos de fundo para as questões políticas e literárias em Cuba.
O que significou para você o prêmio dado
na França a "O Lobo, o Bosque e o Novo
Homem", que deu origem ao filme "Morango e Chocolate"?
Todo mundo sabe que prêmios não
significam nada, mas, a partir de um,
as pessoas te notam -coisa que não
haviam feito até então- e te convertem em objeto
do seu interesse. Foi o que aconteceu comigo. Tornei-me alvo de interesse público em Cuba e noutros
países; me deram oportunidade de publicação, recebi convites para o exterior, minha obra teve muita
crítica. Incrível que isso aconteça justo comigo, porque gosto de estar no mundo, mas sem ser percebido. Além do mais, pela situação particular de Cuba,
soma-se a curiosidade -ou morbidez- política,
porque para muitos não interessam suas opiniões literárias, mas as políticas.
O que tem a dizer sobre o tema do conto?
O tema do meu relato é a intolerância ao diferente,
ao que está em minoria, ao que é mais frágil, mas que
tem direito, em minha opinião, às suas próprias opções. A intolerância, infelizmente, é um mal universal. Em que se baseia a crítica, a rejeição e até mesmo
o ataque de muitos a Cuba? Ao fato de querermos levar a vida de acordo com nossos critérios. E, sejam
corretos ou não, queremos provar um projeto, experimentar com nossas próprias idéias, mas para alguns é inadmissível que alguém se separe das regras.
Por outro lado, é improcedente que
nós, vítimas da intolerância, sejamos
intolerantes, como temos sido. Meu
relato faz referência à intolerância
subsistente em Cuba nos planos da
sexualidade, da religião e da cultura.
David e Diego, os protagonistas da
história, são ambos vítimas da intolerância: Diego, da exterior, porque
pertence aos não-tolerados, é homossexual, politicamente tem algo de
contestador; e David, sobretudo da
que leva dentro, porque pertence aos
que não toleram. David é um estudante universitário de origem camponesa e militante da Juventude Comunista, e Diego, um conhecedor e
amante da cultura cubana. Os dois se
encontram e compartilham uma história que os enriquece mutuamente
no contexto da Cuba pós-revolucionária. Alcançam a tolerância em relação ao outro e, por meio dela, o respeito e a amizade mútuos.
Existe uma preocupação em torno da liberdade de expressão em Cuba. Você se
sentiu livre para escrever?
Sim. Não sei se alguém se decepciona
com essa resposta, se supõe como válida unicamente a contrária. A falta de
liberdade de expressão em um sistema socialista, embora seja uma realidade, um problema, é parte também
de um jogo da política da propaganda. Pessoalmente, venho ganhando
nestes anos a liberdade de que necessito para escrever, como um processo
de maturação pessoal.
Liberdade não é algo que te possam
garantir as leis, os decretos, os congressos, a Unesco, o sistema político.
É sobretudo uma questão pessoal, espiritual, um estado da mente e do espírito, e o país, o Estado, quando tem boa vontade, o que pode fazer é ajudá-lo, estimulá-lo a ser livre.
Minha relação com a Revolução sempre foi clara e
saudável. Não posso inventar-me um currículo de
perseguições nem incômodos, tampouco poderia
me dar um outro de privilégios. Tenho sido e sou um
cidadão comum. Tenho me beneficiado de forma
geral, como qualquer cubano, das conquistas e vitórias da Revolução.
Para começar, à sua existência devo o fato não só de
ser escritor, mas também de ser uma pessoa; de pensar,
ter consciência e orgulho da minha nacionalidade, um
conceito e uma vocação de liberdade. Procedo dessas
classes sociais que, na ilha, anteriormente, só tinham
oportunidades como exceções ou milagres.
Hoje sou um dos escritores mais conhecidos do país;
entretanto meus quatro avós eram analfabetos quando
a Revolução triunfou e minha mãe completou o ensino
primário numa sala de aula em que eu era o professor.
Isso não significa que devo ser um refém dessa gratidão
e, portanto, me calar e aceitar acriticamente a realidade
política e social cubana.
A homossexualidade tem sido pouco tratada na literatura cubana. Porque escolheu esse tema?
Não escolho temas. Aceito os que descubro em meus
personagens e histórias. Também não inauguro o tema em nossa literatura nem sou quem o atualiza.
Aconteceu que meu relato alcançou uma ressonância particular, porque nele acontece uma aproximação tranquila do assunto, para dialogar sem caricaturas nem proselitismo a favor ou contra.
Que relação tem o conto com o filme "Morango e Chocolate", que ganhou tantos prêmios?
É uma reescrita do meu conto, trabalhada criativamente por Tomás Gutiérrez Alea, o Titón, e Juan
Carlos Tabío, que estão entre os mais importantes cineastas latino-americanos. Foi um sucesso pelas
atuações, que são brilhantes, a fotografia, a música e
o estímulo criador que significou trabalhar com Titón e Juan Carlos. Fiquei entusiasmado porque, por
meio do filme, muita gente teve uma aproximação
mais complexa em relação a Cuba do que é habitual
-e o mais livre possível de manipulação.
De seu conto estrearam peças com grande sucesso, uma
com o título de "A Catedral do Sorvete". Em crítica sobre
ela, o escritor cubano Francisco López Sacha diz que seu
conto "cumpriu o milagre da plenitude como talvez nenhum outro da literatura cubana contemporânea". A
que você atribui isso?
Gostaria de pensar que se deve à qualidade do texto e
ao fato de meu relato ser antes de tudo um fato artístico. Claro que o tema tem a ver, assim como o contexto histórico: a relação entre literatura e realidade
em consequência da Revolução, a atitude presente
ou passada de setores do poder quanto à liberdade
de expressão e à critica social e política da obra de arte. Nesse e em todos os meus textos fica claro que
não se trata de uma ação política disfarçada de literatura -manobra frequente de que tanto temos padecido, para azar da literatura e da política verdadeiras.
Tem muita gente disfarçada de escritor e de artista
para agradar e buscar um espaço. Alguns dentro da
Revolução, e outros, fora dela.
Após "El Niño Aquel", você publicou em revistas contos
sobre a perda da inocência entre jovens, planejados para
um livro que chamaria "Los Becados se Enamoran" (Os
Estudantes se Apaixonam). Por que esse livro não saiu?
Compreendi que não era tempo de publicar, mas de
estudar. Em "Los Becados..." eu buscava amadurecimento literário, e aqueles contos me fizeram ver
quanto me faltava trabalhar. Também aqui me correspondeu o papel involuntário de vanguarda, pois,
segundo os críticos, esses contos contribuíram para
uma mudança qualitativa ao introduzir estudantes e
adolescentes como narradores e personagens, o que
significava ver o país e sua realidade de um ponto
inédito: nos anos 60 e 70, eles já não eram os protagonistas da Revolução, mas seus receptores e, ao
contar suas vidas, não relatavam a luta heróica pela
independência e a consolidação da nacionalidade,
mas o simples viver cotidiano em circunstâncias sociais e políticas muito particulares.
Diz-se que muitos escritores não querem nem lembrar o
período mais cinzento da narrativa cubana contemporânea -os anos 70. É seu caso?
A influência dos anos 70 na minha vida literária foi a
de, intuitivamente, retardar meu nascimento. Minha geração surgiu nos anos 80, e estávamos perto
de ou com 30 anos. Nos anos 70, "o forno não estava
para biscoitinhos". Transitei por um caminho muito
mais fácil, já alargado por escritores de outras gerações. O exercício pleno e livre da arte e da literatura
na Revolução é o que me parece natural a esta, mas a
vida tem demonstrado que tal relação não se alcança
por decreto ou em Congresso, senão numa luta forte
e muito dolorosa, porque se dá entre companheiros.
É incrível quão duros e injustos nós, revolucionários,
chegamos a ser entre nós mesmos.
Você escreve contos, romances, é roteirista de cinema.
Em qual destes trabalhos sente-se mais cômodo?
Em nenhum deles. Todos me fazem sofrer.
O que você necessita para escrever?
Vontade e disciplina. Quanto a condições ambientais, gosto de estar só e nu.
Você sempre diz o que pensa?
Sempre estou disposto a dizer e a assumir o que penso, mas devo ser avisado de que vou ser interrogado,
ou devo me preparar para falar. O que me dá trabalho é pensar o que digo. Isso se deve, explica minha
avó, a eu ter me alimentado mal quando pequeno e
ter comido pouco agrião.
Angélica Torres é jornalista e poeta. Essa entrevista foi concedida ao
jornalista cubano Orlando Castellanos, com permissão para publicação do próprio escritor e da União Nacional dos Escritores e Artistas
de Cuba (Uneac), que detém os seus direitos autorais.
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