|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
A América sou eu
O crítico Lee Siegel diz que os eleitores vivem hoje uma cultura de "primeira pessoa"
e defende que a crise atual irá eleger Obama
e tornar o racismo irrelevante nos EUA
|
Obama é mais falcão do que McCain;
pode dar um fim
à Guerra do Iraque,
mais vai
ampliar a do
Afeganistão
|
Bryan Snyder - 26.out.2008/Reuters
|
|
O candidato republicano John McCain durante campanha eleitoral em Cedar Falls, no Estado de Iowa
SÉRGIO DÁVILA
DE WASHINGTON
Lee Siegel acha que não
existe guerra cultural
na atual corrida presidencial norte-americana. O conceito de cultura para republicanos e democratas é diferente, explica.
Para os primeiros, representa questões do dia-a-dia, como
educação, aborto, religião. Para
os segundos, uma discussão
abstrata sobre idéias e política.
O polêmico crítico cultural
norte-americano é autor de
"Against the Machine - Being
Human in the Age of the Electronic Mob" (Contra a Máquina - Sendo Humano na Era da
Turba Eletrônica, Spiegel &
Grau, 2008), um libelo contra a
internet e inovações tecnológicas em geral.
Em 2006, envolveu-se em
uma confusão ao defender os
próprios textos no fórum eletrônico de leitores da "New Republic" usando um pseudônimo. Desde o começo da corrida
eleitoral, vem publicando em
jornais e revistas alguns dos comentários mais originais sobre
a disputa entre Barack Obama
e John McCain.
Na quinta-feira à noite, ele
falou à Folha por telefone.
FOLHA - O sr. diz que essa é a primeira eleição presidencial pós-moderna. Por quê?
LEE SIEGEL - Barack Obama e
John McCain continuam se
apropriando das frases um do
outro, por exemplo. O slogan de
Obama no início era "Sim, nós
podemos". Logo, o slogan da
campanha de McCain virou
"Sim, nós iremos". Eu vejo muita fluidez entre dois lados tão
polarizados.
Um outro aspecto da eleição
pós-moderna é viver por substituição, de forma indireta. Isso
é um subproduto da internet.
As pessoas não agüentam nenhum tipo de candidato em cuja experiência de vida eles não
podem se enxergar.
Estamos vivendo numa cultura da primeira pessoa, na
qual as pessoas parecem incapazes até de usar o pronome
pessoal da terceira pessoa, como "ele" e "ela". Todo o mundo
só usa "eu".
E eu acho que esses dois candidatos estão fazendo um esforço extra para abrigar todo tipo de experiência dos eleitores,
de se abrir para essa vivência
por substituição.
Como Obama fez em seu "infomercial" na quarta-feira passada, em que intercalou sua
história literalmente na de quatro outros americanos, se tornando ele próprio a América. É
extraordinário.
FOLHA - O sr. disse -parafraseio-
que os eleitores colocam Obama
num pedestal por medo ou desconforto e que McCain não se mostra
superior a eles, porque ele tem uma
experiência humilhante em seu passado, que é a tortura durante a guerra, e isso faz com que se pareça mais
com eles. Por que Obama está liderando as pesquisas, então?
SIEGEL - Uma explicação simples: a economia. É a pior crise
econômica desde a Depressão e
está apenas começando. Se não
fosse por isso e pelo fato de
McCain não ter absolutamente
nenhuma idéia original econômica, ele seria o próximo presidente dos EUA.
Hoje, acho que Obama vencerá, mas não ficarei chocado
se McCain virar o jogo.
FOLHA - Qual será o peso do fator
raça na votação de terça?
SIEGEL - Essa é a grande variável. Uns dizem que vai roubar
seis pontos percentuais de
Obama, outros dizem que é
besteira, que vivemos numa sociedade pós-racial, os americanos estão tão insatisfeitos com
os últimos oito anos que até os
racistas votarão dele.
Simplesmente não sabemos.
Minha opinião é que o derretimento da economia tornou a
questão racial inconseqüente.
Não fosse isso, Obama não
seria eleito. Os eleitores estão
passando por cima do racismo
por desespero econômico. Senão, votariam no mais familiar,
o sujeito de rosto branco e cabelo branco.
Veja como, mesmo assim,
McCain está grudado em Obama. Para um país que foi emasculado econômica e militarmente nos últimos oito anos
pelos republicanos, é extraordinário que esse republicano
obviamente tão desqualificado
para ser presidente ainda dê
tanto trabalho a Obama.
FOLHA - O sr. disse que a simpatia
por pessoas que tornam possível
que nos vejamos vivendo a vida delas explica o apelo de Sarah Palin,
por exemplo. O líder tem de ser imperfeito para liderar?
SIEGEL - Sim, Obama passou os
últimos meses assegurando
que é humilde, que é imperfeito, tentando esconder sua arrogância natural, que era o que
lhe causava mais problema no
início. Já McCain chega às pessoas com uma imperfeição pré-fabricada.
Só a imagem desse homem
sendo espancado sem dó no
Vietnã -se foi isso mesmo que
aconteceu, ninguém sabe na
verdade- é uma humilhação
muito grande.
Para um homem tão poderoso como McCain, ter essa imagem de humilhação pairando
sobre ele é um fator consolador
numa democracia como a norte-americana.
O mesmo ocorre com Sarah
Palin. O fato de ela ter uma família com tantos problemas, de
parecer tão imperfeita, foi uma
grande vantagem para ela.
O problema é que foi mal gerenciada, fizeram de uma maneira que, em vez de parecer
imperfeita, mas forte, passou a
parecer rasa e corrompida.
FOLHA - Quando o Partido Republicano gasta US$ 150 mil de roupas
com ela, então, está destruindo Sarah Palin?
SIEGEL - Isso, na verdade, é uma
não-polêmica.
A destruição veio mesmo
quando eles a deixaram longe
da imprensa e, quando a deixaram falar, fizeram-na decorar
respostas, o que, no extremo, a
levou a responder à pergunta
de uma entrevistadora sobre
quais jornais lia com "terei de
ver isso e responder depois".
Claro que lê jornais, só estava
apavorada por medo de dizer o
que não estava aprovado pela
campanha.
Isso fez com que ela parecesse muito mais estúpida do que é
-e ela não é estúpida. Não foram as roupas, mas fazer ela
soar mais popular do que é, se
tornar uma paródia de si mesma, que foi o problema.
FOLHA - Nesse sentido, qual é sua
avaliação da entrada de Joe, o encanador, e Tito, o construtor, na cena
política?
SIEGEL - A democracia nos EUA
sempre foi aos trancos e barrancos, sempre dependeu de
personagens estranhos.
Não me lembro de alguém
como Joe, o encanador, mas,
para citar o YouTube, numa
era em que tudo vai parar na
internet e é comentado por 1
bilhão de pessoas, um evento
real, como a interação do encanador com Obama sobre a política de impostos, vira um cartum e aí se torna algo deprimente por repetição.
Joe, o encanador, deveria ser
apenas Joe, o encanador, o protagonista de um evento real e
natural.
FOLHA - O sr. escreveu que toda essa discussão sobre guerra cultural na
verdade era uma não-discussão, já
que para os republicanos o conceito
de cultura é um, e para os democratas, outro. A crise econômica suplantou a discussão?
SIEGEL - Sim, mas vale retomar.
Os republicanos se tornaram os
mais hábeis em falar de questões com as quais as pessoas
mais sofisticadas não se importam, que são religião, família,
promiscuidade sexual, obscenidade, questões que fazem os
progressistas suspirar de tédio,
mas que são legítimas.
A crise econômica foi uma
bênção para os democratas,
pois essa é a linguagem que eles
falam, a linguagem abstrata das
idéias, discursos e políticas de
governo.
E, nesse momento, é o que
preocupa as pessoas, para onde
ir, o que vai ser feito, o que o governo vai fazer, qual vai ser a
política econômica.
Os republicanos são muito
ruins nesse assunto pelo simples motivo de que eles não
acreditam no governo.
Então não podem participar
da conversa...
FOLHA - Então não foi o caso de,
após 28 anos, os democratas terem
superado os mestres e começado a
falar a língua do povo, pois, nesse
caso, segundo sua tese, eles não teriam escolhido Obama para ser candidato mesmo antes da crise, certo?
SIEGEL - Exato, em tempos normais a escolha teria sido um desastre. Ainda não estou seguro
sobre se um Obama presidente
não vai ser um desastre. Eu prefiro ele a McCain, é claro, mas
não sei de verdade o que traz
escondido nas mãos.
FOLHA - O mundo está fascinado
por ele. O sr. não acha que, se for
eleito, mudará a imagem que se
tem dos EUA?
SIEGEL - Sim, até que Obama
despeje sua primeira bomba
sobre o Paquistão...
Então a imagem dos EUA
voltará a ser a de sempre, a do
valentão se movendo a cotoveladas pelo mundo.
Obama é mais falcão do que
McCain, se mostrou mais
agressivo em relação ao Paquistão, por exemplo. Pode dar um
fim à Guerra do Iraque, mais
vai ampliar a do Afeganistão.
FOLHA - Ao final da leitura de seu
livro "Contra a Máquina", o leitor fica com a impressão de que o sr. acha
a invenção da internet um erro.
SIEGEL - É um desastre sem
proporções. Está destruindo o
jornalismo neste país, por
exemplo. É uma estupidez que
uma inovação tecnológica esteja comprometendo a qualidade
do jornalismo, ao invés de melhorá-la. Não vejo nada novo ou
original vindo dali.
Texto Anterior: O dia D [de dólar] Próximo Texto: Cá entre nós Índice
|