São Paulo, domingo, 02 de novembro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Cá entre nós


Eufórica, Europa vê Obama como o anti-Bush, o que criará uma saia justa para os líderes do continente caso ele perca a eleição

TIMOTHY GARTON ASH

Do meu posto de observação em Stanford, Califórnia, e de minha condição de inglês, europeu e viciado em notícias via TV a cabo e internet 24 horas por dia, percebo que muitos norte-americanos continuam a sofrer de uma tocante ilusão de que a atual eleição é assunto deles.
Curioso. Eles não compreendem? Essa eleição é nossa. A eleição do mundo. Nosso futuro depende dela, e a vivemos de maneira tão intensa quanto os norte-americanos. A única coisa que nos falta é o voto.
O mundo pode não ter voto, mas tem candidato. Uma pesquisa do serviço mundial da BBC, conduzida em 22 países nos últimos meses, constatou que Barack Obama leva vantagem por margem de 4 a 1 sobre John McCain.
Quase metade dos entrevistados afirmaram que uma vitória de Obama "mudaria fundamentalmente" sua percepção dos EUA. E uma mudança é certamente necessária. Ao longo dos dois mandatos do presidente George W. Bush, o Pew Global Attitudes Project, que administra uma série de pesquisas mundiais de opinião pública, documentou aquilo que qualquer pessoa que viaja pelo mundo sabe: uma perda substancial de posição, credibilidade, atração -e, portanto, poder- por parte dos EUA.
No contexto dos EUA, Obama é "negro" ou "afro-americano". Sua candidatura expõe uma vez mais como o fator anacronicamente designado como "raça" -ou seja, o legado da escravatura e da segregação- representa o fundamento oculto da política dos EUA.
No contexto internacional, Obama é três coisas: primeiro, é um de nós -filho de um mundo cada vez mais misto e, agora, aspirante ao posto de homem mais poderoso nele.
Verdadeiramente cosmopolita: não apenas afro-americano, mas também um pouco havaiano, queniano, do Kansas, indonésio.

Auto-imagem
Segundo, ele não é George W. Bush. John McCain tampouco é Bush, mas é bem menos não-Bush. Por fim, personifica tudo aquilo que os estrangeiros ainda amam nos EUA.
Quando vou a Oxford e viajo pela Europa, sempre me encontro com jovens enfurecidos com os EUA. "Eu sou muito pró-européia, sabe?", me disse uma estudante britânica.
Minha curiosidade foi despertada pelo fato raro -uma britânica pró-Europa!-, e perguntei o motivo. "Basicamente porque sou antiamericana, acho." Mas a verdade é que ela nada tinha de antiamericana, e eu apostaria meu último euro em que ela hoje é obamaníaca.
Em termos culturais, sociais e estéticos, ele representa os EUA que vivem profundamente na imaginação cotidiana dos jovens europeus, inspirados pelo suave poder do cinema, da música, da literatura e das séries de TV norte-americanas, como "Friends", "ER", "The West Wing", "The Fresh Prince of Bel-Air" e até mesmo "Jornada nas Estrelas".
É algo que se pode ouvir em qualquer café em Oxford, vindo de um eslovaco, alemão ou chinês. Que alguém de origens modestas e imigrantes como Obama possa subir tanto também serve para renovar a imagem poderosa e positiva dos EUA como terra da oportunidade -uma auto-imagem americana que boa parte do mundo acatou, por menos que corresponda aos fatos estatísticos e à baixa mobilidade social para a qual apontam.

Alta expectativa
Caso seja eleito, descobrirá em poucos meses quanto da proporção da hostilidade mundial classificada frouxamente como "antiamericanismo" é antiamericanismo de fato e quanto dela representa apenas uma violenta alergia -da qual muitos norte-americanos compartilham- a um presidente específico, a um dado conjunto de políticas e a uma determinada versão do americanismo.
Mas essa popularidade do candidato faz com que aquilo que esteja em jogo na eleição ganhe alarmante importância.
Porque as esperanças internacionais cresceram tanto, a decepção, caso Obama fracasse, seria devastadora.
O choque seria ainda maior dada a escolha de Sarah Palin como vice por McCain, já que ela, como Bush, reforça todos os clichês europeus sobre a alteridade (a excentricidade, o comportamento ao modo caubói e a caipirice) dos norte-americanos.
Essa decepção pode representar injustiça diante do real conteúdo da política externa de John McCain, mas, na política internacional, como nos mercados financeiros, a percepção responde por larga porção da realidade.
Caso os norte-americanos escolham McCain e Palin, depois de reelegerem Bush em 2004, não creio que seja exagero dizer que muitos europeus desistiriam deles.
É claro que os governos europeus não o fariam, mas teriam de operar nos limites que a decepção popular traçaria para sua realidade. Isso faria diferença para os EUA mesmo em um bom momento. E faria ainda mais diferença nos tempos em que vivemos.
Mesmo antes da crise financeira, a lista de problemas que se empilham nas caixas de correio do novo presidente dos EUA já era formidável.

Aliados e influência
Antes mesmo que a atual crise acrescentasse US$ 1 trilhão a uma dívida nacional já formidável, o poderio relativo dos EUA para realizar objetivos sem ajuda -isto é, de modo unilateral- havia se reduzido significativamente ao longo dos oito anos passados, e não menos devido ao renascimento de grandes potências como Rússia e China.
Alguma data próxima ao ano 2000 poderá ser definida pelos historiadores do futuro como o apogeu do poderio norte-americano. Em um mundo assim, a necessidade de aliados e credibilidade internacional é maior que nunca.


TIMOTHY GARTON ASH é professor de estudos europeus na Universidade de Oxford e autor de "Nós, o Povo" (Cia. das Letras). Este texto saiu no "New York Review of Books". Tradução de Paulo Migliacci.


Texto Anterior: A América sou eu
Próximo Texto: Muito oba-oba
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.