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NA TRILHA DOS DITADORES
O pequeno e miserável Chade, país da África saheliana, fecha o cerco ao líder autoritário Hissène Habré, cujo governo foi acusado de matar mais de 40 mil pessoas
ERIKA SALLUM
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, NO CHADE
N
a sede de uma associação de direitos humanos de
Ndjamena, capital
do Chade, não há
luz nem água. Das cerca de 20
pessoas reunidas ali, poucos
tomaram café-da-manhã. Provavelmente não jantarão. Neste país da África saheliana, um
dos mais miseráveis do mundo,
só se come uma vez por dia.
Mas a fome não atrapalha o
encontro. Eles estão ali para
discutir os próximos passos de
uma luta travada já há mais de
oito anos para tentar levar a
julgamento aquele que foi seu
presidente entre 1982 e 1990.
Nesse período, o então ditador Hissène Habré e sua versão
local da Gestapo, chamada
DDS, mataram mais de 40 mil
pessoas, torturaram outras milhares e deixaram cerca de 30
mil órfãos e viúvas -números
calculados pela Comissão de
Investigação criada pelo governo do Chade após sua gestão.
Ali, são raros os que sabem
ler e escrever. Ainda assim, discutem justiça internacional,
usando casos como o do chileno Augusto Pinochet e o do liberiano Charles Taylor, com a
desenvoltura de advogados especializados no tema.
Um senhor de terno rasgado,
que sobreviveu embaixo de
uma pilha de 89 corpos, diz que
tem fé de que, um dia, Habré
seja preso, pois hoje "a comunidade internacional está mais
atenta às atrocidades cometidas por governantes como ele".
A mesma cena seria impensável há dez anos, principalmente em um país que vive em
guerra civil e sob um regime repressor, onde todos os presidentes recentes, sem exceção,
chegaram ao poder por meios
não-democráticos.
Desde que ditadores como o
sérvio Slobodan Milosevic e Pinochet começaram a responder por seus crimes, a partir
dos anos 90, uma lenta mas intensa transformação vem ocorrendo mundo afora.
A professora de direito da
Universidade da Califórnia
Naomi Roht-Arriaza diz que,
desde então, mudou a percepção internacional para as possibilidades de como lidar com
barbáries cometidas em larga
escala por chefes de governo.
Criou-se, assim, um espaço político em que líderes autoritários não conseguem mais tão
facilmente escapar ilesos, como o ugandense Idi Amin Dada, que morreu tranqüilo na
Arábia Saudita, ou o etíope
Mengistu Haile Mariam, acolhido no Zimbábue.
É verdade que Pinochet não
foi para a prisão, e Milosevic
morreu antes de ser condenado. Como eles, também Suharto, da Indonésia, que tinha começado a ser julgado por corrupção, mas depois foi liberado
do processo por "razões médicas". Sem falar de Omar al Bashir e Robert Mugabe, que continuam espalhando o terror no
Sudão e no Zimbábue.
Preso no Senegal
Mas se hoje Charles Taylor
encontra-se no banco dos réus
em Haia, membros do cambojano Khmer Vermelho podem
finalmente pagar pelo que fizeram e o chadeano Habré aguarda julgamento em prisão domiciliar no Senegal, isso se deve à
mudança no funcionamento da
Justiça internacional.
Massacres cometidos por Estados ou governos ganharam
nome e rosto, e seus autores
enfim passaram a ser criminalmente responsabilizados.
"Casos como o de Pinochet
alavancaram uma onda de esperança para vítimas de vários
cantos do planeta", conta Reed
Brody, advogado da organização de direitos humanos Human Rights Watch.
Desde o início dos anos 2000,
em parceria com as vítimas
chadeanas, Brody trabalha para que Habré seja preso. "No
passado assistimos ao paraguaio Alfredo Stroessner gastar
seus bens no exílio no Brasil. Isso hoje até pode acontecer, mas
não sem protestos e pressão internacional contra."
A idéia de levar à Justiça governantes sanguinários não é
recente. Os tribunais de Nuremberg e Tóquio acabaram, a
partir de 1945, com a tradição
ocidental de simplesmente
executar ou encarcerar, sem
julgamento, líderes inimigos.
Apesar de não terem sido
exatamente tribunais internacionais -pois compostos apenas pelas Forças Aliadas-, eles
inauguraram uma nova era de
processos criminais. "Logo
após a Segunda Guerra, os britânicos e russos sugeriram matar os prisioneiros. Stálin defendeu a eliminação de 50 mil
nazistas, enquanto Churchill
queria a execução de uma centena de líderes", diz Jennifer
Trahan, professora de justiça
internacional da Universidade
de Nova York.
"Após várias discussões,
Roosevelt os convenceu de que
isso não seria a resposta mais
correta a ser deixada como legado após um dos mais violentos episódios da história."
Criticado por ser cheio de falhas, Nuremberg não incluiu os
abusos cometidos pelos Aliados e ignorou o Holocausto, enfatizando apenas crimes de
guerra e de agressão. Versão
piorada, Tóquio jamais citou
Hiroshima e Nagasaki e ainda
excluiu o imperador japonês de
sua lista de criminosos.
Apesar disso, esses casos inspiraram a criação de convenções internacionais criminalizando o genocídio e a tortura e,
décadas depois, do Tribunal
Penal Internacional.
A Guerra Fria representou
um hiato nos julgamentos de
ditadores. A batalha contra o
comunismo levou os EUA e
países europeus a financiar ditaduras em busca de apoio contra o "perigo vermelho". Milhões de dólares sustentaram
regimes opressores, como alguns da América Latina e o governo de Habré, cujos agentes
receberam grande ajuda de europeus e americanos para fazer
frente à ameaça do vizinho líbio
Muammar Gaddafi.
Mas o fim da União Soviética
e os massacres na ex-Iugoslávia
mudaram os rumos da história.
"A Europa e os EUA nada fizeram quando os sérvios invadiram regiões da ex-Iugoslávia
protegidas pela ONU, matando
milhares de civis", afirma Trahan. "Havia um sentimento generalizado de que essas violações não poderiam ficar impunes. Nuremberg precisava ser
reeditado."
Desta vez bancado pela ONU,
o Tribunal Penal Internacional
para a ex-Iugoslávia, aberto em
1993, fez mais do que só tentar
julgar Milosevic. Até hoje, em
Haia, políticos e comandantes
croatas, sérvios e bósnios estão
sendo investigados e punidos.
Ruanda
No tribunal para Ruanda,
criado um ano depois, pela primeira vez um líder de governo,
o então primeiro-ministro
Jean Kambanda, foi declarado
culpado por genocídio.
Infelizmente, a falta de apoio
internacional minou muito do
potencial dos dois tribunais.
Além de custarem caro (juntos,
já consumiram mais de 2 bilhões de dólares), mostraram-se lentos, o que levou a ONU a
determinar 2010 como data-limite para o fim das atividades.
Até aqui, frustraram vítimas
e pouco contribuíram para fomentar paz em sociedades destroçadas pela violência étnica.
Problemas semelhantes afetam a Corte Penal Internacional, que só aceita crimes cometidos após 2002 e mostra resultados pífios em seu trabalho
para combater atrocidades no
Congo, em Uganda, na República Centro-Africana e no Sudão.
Uma saída para contornar a
burocracia de tribunais internacionais tem sido o uso de leis
domésticas para cercar ditadores. Assim como Pinochet, processado por um juíz espanhol
por atos cometidos no Chile, o
chadeano Habré teve sua extradição pedida ao Senegal pela
Bélgica, baseada em seu princípio de jurisdição universal, em
que um país se considera competente para julgar crimes graves ocorridos em qualquer parte do mundo.
Mas após a pressão dos EUA,
depois que George W. Bush e
Donald Rumsfeld foram incluídos na lista de suspeitos, muitas nações vêm recuando, por
estarem mais receosas em usar
suas leis de jurisdição universal. Vários países estreitaram
sua ação apenas para casos que
envolvam seus cidadãos.
O Senegal tenta postergar o
julgamento de Habré, enquanto suas vítimas aguardam justiça em um país que, diferentemente do Chile ou da África do
Sul, ainda vive em um regime
fechado.
"Perdi tudo por causa de Habré", diz Dakoye Mianmbaye
Djetolda, que ficou seis anos
preso, sem julgamento, e foi
torturado. "Nesse tempo, meu
filho morreu e minha mulher
se casou com outro, pois pensou que eu estava morto."
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