São Paulo, domingo, 03 de fevereiro de 2008

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NA TRILHA DOS DITADORES

O pequeno e miserável Chade, país da África saheliana, fecha o cerco ao líder autoritário Hissène Habré, cujo governo foi acusado de matar mais de 40 mil pessoas

ERIKA SALLUM
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, NO CHADE

N a sede de uma associação de direitos humanos de Ndjamena, capital do Chade, não há luz nem água. Das cerca de 20 pessoas reunidas ali, poucos tomaram café-da-manhã. Provavelmente não jantarão. Neste país da África saheliana, um dos mais miseráveis do mundo, só se come uma vez por dia.
Mas a fome não atrapalha o encontro. Eles estão ali para discutir os próximos passos de uma luta travada já há mais de oito anos para tentar levar a julgamento aquele que foi seu presidente entre 1982 e 1990.
Nesse período, o então ditador Hissène Habré e sua versão local da Gestapo, chamada DDS, mataram mais de 40 mil pessoas, torturaram outras milhares e deixaram cerca de 30 mil órfãos e viúvas -números calculados pela Comissão de Investigação criada pelo governo do Chade após sua gestão.
Ali, são raros os que sabem ler e escrever. Ainda assim, discutem justiça internacional, usando casos como o do chileno Augusto Pinochet e o do liberiano Charles Taylor, com a desenvoltura de advogados especializados no tema.
Um senhor de terno rasgado, que sobreviveu embaixo de uma pilha de 89 corpos, diz que tem fé de que, um dia, Habré seja preso, pois hoje "a comunidade internacional está mais atenta às atrocidades cometidas por governantes como ele".
A mesma cena seria impensável há dez anos, principalmente em um país que vive em guerra civil e sob um regime repressor, onde todos os presidentes recentes, sem exceção, chegaram ao poder por meios não-democráticos.
Desde que ditadores como o sérvio Slobodan Milosevic e Pinochet começaram a responder por seus crimes, a partir dos anos 90, uma lenta mas intensa transformação vem ocorrendo mundo afora.
A professora de direito da Universidade da Califórnia Naomi Roht-Arriaza diz que, desde então, mudou a percepção internacional para as possibilidades de como lidar com barbáries cometidas em larga escala por chefes de governo. Criou-se, assim, um espaço político em que líderes autoritários não conseguem mais tão facilmente escapar ilesos, como o ugandense Idi Amin Dada, que morreu tranqüilo na Arábia Saudita, ou o etíope Mengistu Haile Mariam, acolhido no Zimbábue.
É verdade que Pinochet não foi para a prisão, e Milosevic morreu antes de ser condenado. Como eles, também Suharto, da Indonésia, que tinha começado a ser julgado por corrupção, mas depois foi liberado do processo por "razões médicas". Sem falar de Omar al Bashir e Robert Mugabe, que continuam espalhando o terror no Sudão e no Zimbábue.

Preso no Senegal
Mas se hoje Charles Taylor encontra-se no banco dos réus em Haia, membros do cambojano Khmer Vermelho podem finalmente pagar pelo que fizeram e o chadeano Habré aguarda julgamento em prisão domiciliar no Senegal, isso se deve à mudança no funcionamento da Justiça internacional.
Massacres cometidos por Estados ou governos ganharam nome e rosto, e seus autores enfim passaram a ser criminalmente responsabilizados.
"Casos como o de Pinochet alavancaram uma onda de esperança para vítimas de vários cantos do planeta", conta Reed Brody, advogado da organização de direitos humanos Human Rights Watch.
Desde o início dos anos 2000, em parceria com as vítimas chadeanas, Brody trabalha para que Habré seja preso. "No passado assistimos ao paraguaio Alfredo Stroessner gastar seus bens no exílio no Brasil. Isso hoje até pode acontecer, mas não sem protestos e pressão internacional contra."
A idéia de levar à Justiça governantes sanguinários não é recente. Os tribunais de Nuremberg e Tóquio acabaram, a partir de 1945, com a tradição ocidental de simplesmente executar ou encarcerar, sem julgamento, líderes inimigos.
Apesar de não terem sido exatamente tribunais internacionais -pois compostos apenas pelas Forças Aliadas-, eles inauguraram uma nova era de processos criminais. "Logo após a Segunda Guerra, os britânicos e russos sugeriram matar os prisioneiros. Stálin defendeu a eliminação de 50 mil nazistas, enquanto Churchill queria a execução de uma centena de líderes", diz Jennifer Trahan, professora de justiça internacional da Universidade de Nova York.
"Após várias discussões, Roosevelt os convenceu de que isso não seria a resposta mais correta a ser deixada como legado após um dos mais violentos episódios da história."
Criticado por ser cheio de falhas, Nuremberg não incluiu os abusos cometidos pelos Aliados e ignorou o Holocausto, enfatizando apenas crimes de guerra e de agressão. Versão piorada, Tóquio jamais citou Hiroshima e Nagasaki e ainda excluiu o imperador japonês de sua lista de criminosos.
Apesar disso, esses casos inspiraram a criação de convenções internacionais criminalizando o genocídio e a tortura e, décadas depois, do Tribunal Penal Internacional.
A Guerra Fria representou um hiato nos julgamentos de ditadores. A batalha contra o comunismo levou os EUA e países europeus a financiar ditaduras em busca de apoio contra o "perigo vermelho". Milhões de dólares sustentaram regimes opressores, como alguns da América Latina e o governo de Habré, cujos agentes receberam grande ajuda de europeus e americanos para fazer frente à ameaça do vizinho líbio Muammar Gaddafi.
Mas o fim da União Soviética e os massacres na ex-Iugoslávia mudaram os rumos da história. "A Europa e os EUA nada fizeram quando os sérvios invadiram regiões da ex-Iugoslávia protegidas pela ONU, matando milhares de civis", afirma Trahan. "Havia um sentimento generalizado de que essas violações não poderiam ficar impunes. Nuremberg precisava ser reeditado."
Desta vez bancado pela ONU, o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, aberto em 1993, fez mais do que só tentar julgar Milosevic. Até hoje, em Haia, políticos e comandantes croatas, sérvios e bósnios estão sendo investigados e punidos.

Ruanda
No tribunal para Ruanda, criado um ano depois, pela primeira vez um líder de governo, o então primeiro-ministro Jean Kambanda, foi declarado culpado por genocídio.
Infelizmente, a falta de apoio internacional minou muito do potencial dos dois tribunais. Além de custarem caro (juntos, já consumiram mais de 2 bilhões de dólares), mostraram-se lentos, o que levou a ONU a determinar 2010 como data-limite para o fim das atividades.
Até aqui, frustraram vítimas e pouco contribuíram para fomentar paz em sociedades destroçadas pela violência étnica.
Problemas semelhantes afetam a Corte Penal Internacional, que só aceita crimes cometidos após 2002 e mostra resultados pífios em seu trabalho para combater atrocidades no Congo, em Uganda, na República Centro-Africana e no Sudão.
Uma saída para contornar a burocracia de tribunais internacionais tem sido o uso de leis domésticas para cercar ditadores. Assim como Pinochet, processado por um juíz espanhol por atos cometidos no Chile, o chadeano Habré teve sua extradição pedida ao Senegal pela Bélgica, baseada em seu princípio de jurisdição universal, em que um país se considera competente para julgar crimes graves ocorridos em qualquer parte do mundo.
Mas após a pressão dos EUA, depois que George W. Bush e Donald Rumsfeld foram incluídos na lista de suspeitos, muitas nações vêm recuando, por estarem mais receosas em usar suas leis de jurisdição universal. Vários países estreitaram sua ação apenas para casos que envolvam seus cidadãos.
O Senegal tenta postergar o julgamento de Habré, enquanto suas vítimas aguardam justiça em um país que, diferentemente do Chile ou da África do Sul, ainda vive em um regime fechado.
"Perdi tudo por causa de Habré", diz Dakoye Mianmbaye Djetolda, que ficou seis anos preso, sem julgamento, e foi torturado. "Nesse tempo, meu filho morreu e minha mulher se casou com outro, pois pensou que eu estava morto."


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