São Paulo, domingo, 03 de agosto de 2008

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Censura fina


Regime modera repressão a escritores, mas Taiwan e dissidentes permanecem temas vetados; vida privada e ascensão das mulheres são novos chamarizes editoriais

Novo imaginário chinês é dominado pelo slogan do líder Deng Xiaoping: "Enriqueçam!"


ALEXIS LACROIX

No "Império do Meio", os escritores parecem estar condenados a serem amordaçados, ou, pelo menos, a "autolimitar" o exercício da liberdade de expressão.
No momento em que a comunidade internacional volta sua atenção à China, a "Le Magazine Littéraire" quis aprofundar sua reflexão sobre o que está em jogo na criação literária dentro de um regime de censura.
Como se dá a ingerência do poder do Estado na literatura chinesa? A censura paralisa os escritores? Ou os leva a enveredar por caminhos esquivos e manobrar para escapar das proibições? Até que ponto sua situação é comparável com a dos dissidentes soviéticos?
Ainda existe a possibilidade de uma abertura?
Essas perguntas foram discutidas por dois conhecedores da realidade do país: o sinólogo francês Jean-Luc Domenach, diretor do Centro de Estudos e Pesquisas Internacionais, e o editor Philippe Picquier.

 

PERGUNTA - Quais são as relações entre literatura e censura?
PHILIPPE PICQUIER
- Hoje a censura na China assume formas muito diferentes das que prevaleceram nas primeiras décadas do regime comunista. Durante a Revolução Cultural, a censura foi implacável. Desde então, os escritores vêm tendendo à autocensura.
Além disso, a situação de muitos escritores tornou-se mais nuançada. Desde que não falem nem do Partido Comunista nem dos dirigentes, da religião ou do Tibete, gozam de certa margem de manobra, e a censura os deixa em paz.
Quando assinam produtos muito bons, impregnados de referências ocidentais, mas fundamentalmente destituídos de qualquer conotação política, os autores chineses não enfrentam nenhuma dificuldade.
Nessa situação ambígua, muitos foram levados a aplicar a "teoria da evasão". Com apenas 50 anos, escritores como Yan Lianke, Bi Feiyu ou Mo Yan às vezes se autocensuram.
Mas encontraram na paródia e na ironia e, de modo mais geral, na insistência no "valor alusivo das coisas" meios de contornar o dispositivo estatal e implacável da censura.
Ao preço de uma grande verborragia ou disfarçando seu discurso como transposição histórica, esses escritores "codificam" suas mensagens. Condenam a opressão, mas o fazem de modo oblíquo.
Tanto Mo Yan quanto Yan Lianke são filhos da Revolução Cultural e das instituições -no caso, do Exército, do qual saíram. São mestres em "mostrar as nuvens para designar a Lua".
Assim, enquanto Mo Yan não pára de denunciar alegoricamente a burocracia do Exército, em histórias que freqüentemente caem no fantástico, como é "O País da Bebida", Yan Lianke, no grande romance "O Sonho da Vila dos Ding" (de divulgação proibida), põe em cena seu povoado natal, contaminado pela Aids.
JEAN-LUC DOMENACH - Assim como o sr., acredito que o discurso onipresente de alguns militantes ocidentais dos direitos humanos é inoperante no caso chinês.
Nos últimos meses, a mobilização desses ativistas, superexposta na mídia, sugere que nada acontece na China e que a situação dos direitos humanos não parou de piorar nas últimas duas décadas.
Na realidade, Philippe Picquier tem razão em lembrar que na China as verdadeiras questões em jogo não podem ser reduzidas a um confronto caricatural entre o mutismo da sociedade civil e o do poder.
Mas minha interpretação da situação atual certamente seria bastante diferente da sua. Como o sr., eu constato que os chineses não passaram os últimos 20 anos inertes. Tanto as classes populares quanto os intelectuais não pararam de inventar estratégias para fazer frente ao controle das autoridades.
É por isso que o conceito de "contorno", aplicado às estratégias usadas pelos escritores, me parece igualmente apropriado.

PERGUNTA - Como se dá o contorno da censura?
PICQUIER
- Os escritores atuais utilizam a censura de forma inteligente. Fazendo a ficção funcionar como máquina para tratar obliquamente a realidade que os cerca, eles limam as grades de sua prisão cotidiana, deixando a seus leitores o encargo de ler nas entrelinhas, para levar adiante sua reflexão.
Em seus primeiros livros (peças de teatro ou narrativas breves), [o Prêmio Nobel de 2000] Gao Xinjiang lançou luz sobre o absurdo do mundo por meio de pequenos toques impressionistas.
Em seu romance "A Serviço do Povo" [ed. Record], Yan Lianke não se contenta em usar a ironia como arma e narrar a paixão tórrida da mulher de um coronel por seu jardineiro -ele solapa de modo sub-reptício os alicerces da fé na instituição.
Não é por acaso que "A Serviço do Povo" foi proibido, tendo seus exemplares impressos sido apreendidos. Mas o romance de Yan Lianke pôde ser publicado fora do país.
E, apesar disso, seu autor foi autorizado a continuar a escrever e publicar, além de conservar sua residência e o veículo ao qual seu cargo lhe dava direito.
Sob uma condição expressa, porém: que se mantenha calado no espaço público.
Essa anedota ilustra de maneira exemplar o jogo existente na China entre a paisagem literária e as autoridades.
Não existe conivência entre os dois lados. Os escritores chineses não têm nenhum sentimento de cumplicidade para com as instituições responsáveis pela censura. Mas tolera-se uma crítica velada, desde que não sejam atravessados os limites do confronto.
DOMENACH - O contorno é a atitude mais freqüente, mas não é universal. Também há dissidentes -e especialmente escritoras dissidentes, como Yu Jie- que não hesitam em travar um braço-de-ferro direto com o poder, pois acreditam que a luta aberta comporta a hipótese de vitória.
Eles sobrevivem com dificuldade, já que o poder os persegue, como, por exemplo, com a destruição de endereços e mensagens de e-mail. Mesmo nesse caso, porém, existem acomodações inesperadas.
A escritora Yu Jie me explicou recentemente que foi autorizada a lecionar um mês por ano em uma universidade norte-americana.
Considerando esses casos, é possível pensar que a situação vigente na China hoje se assemelha um pouco aos últimos anos da União Soviética.
Aliás, tudo parece indicar uma inflexão do domínio do poder. Não se trata mais de controlar ou reprimir tudo.
O essencial hoje é aplicar a vigilância em relação apenas aos pontos mais importantes.
Os temas mais "radioativos" para os escritores são tudo aquilo que diz respeito aos dissidentes, a Taiwan, aos dirigentes e à vida privada destes.

PERGUNTA - As produções editoriais chinesas recentes refletem essa flexibilização das restrições?
DOMENACH
- Trouxe de minhas últimas viagens à China uma série de textos totalmente novos na paisagem editorial. São livros de memórias extremamente originais, assinados ou por ex-dirigentes que sobreviveram ou por seus secretários, suas mulheres ou seus filhos.
É claro que essas biografias obedecem às regras de prudência elementar, evitando fazer qualquer negação crítica.
Os autores nunca incriminam diretamente os governos chineses passados -limitam-se a sugerir que o "herói" de suas memórias foi maltratado pelo poder da época.
Cada vez mais mulheres de dirigentes se afirmam, após as mortes de seus maridos, como administradoras da memória deles ou até mesmo depositárias de seus legados.
Foi o caso, recentemente, da mulher de Deng Xiaoping, que também escreveu suas memórias com muita sutileza.
Percebe-se também uma "perestroika" literária, com a ocorrência de um interesse crescente do público chinês pelo indivíduo e pela família.

PERGUNTA - É a tradução chinesa da revolução individualista?
DOMENACH
- As estratégias da intimidade se impõem como chaves para compreender o conjunto da realidade social, inclusive na cúpula do Estado.
PICQUIER - Para voltar às estratégias da intimidade, acrescentaria que o novo imaginário chinês é dominado pelo slogan de Deng Xiaoping -"enriqueçam!". Assim, não é por acaso que Confúcio esteja sendo rapidamente reabilitado hoje.
E, com ele, não apenas a célula familiar e a intimidade do casal, mas também os conceitos de ordem e hierarquia: permaneçam confucianos e, na literatura, poderão fazer o que melhor lhes convier.

PERGUNTA - Nesse contexto, como os escritores chineses podem se engajar? Ingressando na dissidência?
PICQUIER
- De uma maneira diferente da dos intelectuais ocidentais, é claro.
Em razão das dificuldades inerentes a sua situação, muitos se mostram pragmáticos.
Assim como os editores, na ausência de alternativa melhor, aceitam a evolução em curso na produção cultural: de um lado o domínio do Estado sobre todas as editoras; de outro, um relaxamento progressivo do controle do Estado sobre a difusão e distribuição de livros e sobre o controle dos direitos autorais.
Se, por outro lado, um escritor não aceitar esse estado de coisas e exprimir abertamente sua desaprovação, é obrigado a fugir para o exterior ou a refugiar-se num "exílio interno", que lhe proíbe qualquer manifestação pública.

PERGUNTA - A perestroika literária que, segundo os srs., existe até certo ponto na China autoriza a divulgação de escritos sobre a vida íntima, mas continua a proibir qualquer questionamento sério sobre a história do regime. Por que, então, os intelectuais chineses, contrariamente aos dissidentes soviéticos, não recorreram aos jornais clandestinos ("samizdats")?
DOMENACH
- Os intelectuais chineses têm a impressão de terem perdido uma série de batalhas. Desde os anos 1930, os escritores comunistas afirmaram seu predomínio, derrotando os social-democratas.
Mais recentemente, a batalha democrática voltou-se contra seus principais arquitetos: os escritores democratas, impregnados pelos valores ocidentais, foram arrasados.
Desde então, eles nivelaram suas ambições por baixo. Sua tendência passou a ser sobretudo de ater-se aos limites impostos pelo poder.
Quanto aos "samizdats", a primeira razão pela qual não existem na China é um problema de recepção: simplesmente não haveria muitas pessoas para lê-los e para sustentar seus autores.
Além disso, o boom econômico modificou profundamente o cotidiano dos chineses, como os próprios democratas se esforçam para reconhecer.
Hoje, muitos dirigentes chineses têm consciência de que a passagem para a democracia é algo que, no longo prazo, não poderá ser evitado.
Embora os ocidentais não os levem a sério, a maioria dos chineses -incluindo os escritores- pressente que a situação de seu país talvez esteja menos bloqueada do que parece.
Finalmente, a democracia ocidental, vista a partir da China, está longe de representar um modelo invejável.

PERGUNTA - Os escritores chineses também estão impregnados por esse relativismo?
PICQUIER
- Os ocidentais, quando se prendem a seu conceito de universal e de direitos humanos, correm o risco de romper o diálogo com a China. Seria ainda mais prejudicial corrermos o risco de, com isso, fazer abortar as tentativas democráticas autênticas na China.
Longe de nossas representações nitidamente delimitadas, a maioria dos escritores chineses prima por navegar por vias oblíquas.
Não é por acaso que, como vem ocorrendo na Índia, um número cada vez maior de mulheres vem ingressando na carreira de escritoras.
DOMENACH - Com a exceção de uma mulher, Chai Ling, que se destacou na dissidência chinesa em 1989, todos os dissidentes mais conhecidos até agora têm sido homens.
Mas o fenômeno mais marcante dos últimos anos não é, portanto, a tentativa de sobrevivência dos democratas reprimidos em 1989 [no massacre de Tiananmen] -é a emergência de uma geração literária, em grande parte feminina, que é portadora de valores alternativos e, a meu ver, promissores.


A íntegra deste texto foi publicada no "Magazine Littéraire".
Tradução de Clara Allain.


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