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+ Teatro
A barbárie sob a superfície
Em sua nova peça,
Yasmina Reza encena a violenta tensão latente nas relações de dois
casais
FRANCK NOUCHI
N
o início, não acontece nada, ou quase nada, nem incerteza nem tensão. Apenas, talvez, um pressentimento.
Dois casais se conhecem pela
razão mais banal: no dia 3 de
novembro, na praça de l'Aspirant-Dunant (15º "arrondissement" de Paris), Ferdinand
Reille, 11 anos, deu um soco no
rosto de Bruno Houillié, também de 11 anos, após uma altercação verbal entre os dois.
Yasmina Reza indica, no
preâmbulo de sua nova peça,
"Le Dieu du Carnage" [O Deus
da Carnificina, ed. Albin Michel, 128 págs., 10, R$ 28],
que na casa dos Houillé reina
um ambiente "grave, cordial e
tolerante".
Os dois casais se sentam face
a face, tendo entre eles uma
mesa baixa coberta de livros de
arte. Também há dois grandes
buquês de tulipas em vasos.
Evidentemente estamos entre pessoas altamente civilizadas. "Não ganharemos nada se
nos deixarmos levar por uma
lógica passional", diz Véronique Houillé logo de início.
Só que estamos no universo
de Yasmina Reza. A situação
inicial não passa de pretexto; o
desastre é inevitável.
Uma palavra mal escolhida, o
menor mal-entendido funcionam como faíscas que terminarão por provocar um verdadeiro massacre.
Tudo acontece pelo deslize
progressivo dos sentimentos,
em que de uma conversa feita
de tudo o que existe de mais
policiado passa-se para uma
espécie de confronto bárbaro
entre quatro paredes.
Fica claro rapidamente que
os garotos vão servir ao mesmo
tempo de pretexto e detonador. Competição, amor-próprio, ciúmes, calúnias -sua
simples evocação é fonte de
discórdia entre os casais mas
também para cada um deles
em suas interioridades.
Com uma precisão quase cirúrgica, a escritora, em "O
Deus da Carnificina", consegue
colocar em dia, por camadas
sucessivas, os mil e um não-ditos subjacentes às relações desses dois casais.
Extraordinária criadora de
diálogos, Yasmina Reza reata
aqui com a verve que entusiasmou os leitores e espectadores
de "Arte", a peça que a levou ao
sucesso mundial a partir de
1994 (em "Arte", era a masculinidade moderna que era posta
a nu; aqui, é sobretudo o casal
urbano superficial).
Como acontece nas obras de
Reza, o leitor ou espectador ri
cada vez mais, à medida que os
personagens vão mostrando
suas garras.
Violência onipresente
Mas atenção: as aparências
às vezes enganam. A obra avança mascarada.
Atrás de um primeiro nível,
digamos mundano, muito bem-sucedido, muito divertido, aflora uma visão apaixonante da
natureza humana e do mundo
contemporâneo (o que poderia
haver de mais emblemático da
barbárie tecnológica que nos
invade do que as constantes interrupções que o celular de
Alain impõe à conversa?).
Com a ajuda do rum, a violência está ali, onipresente, à
flor da pele.
Os personagens vivem sob
pressão (social, psicológica, sexual...), com um desejo irreprimível de acabar com ela.
Essa peça foi criada em Zurique, na Suíça, em dezembro de
2006. Quem a interpretará?
Seis anos atrás, Yasmina Reza afirmou que jamais poderia
escrever para atores medíocres. "Meus escritos", disse ela,
"depositam confiança total no
ator. Com um ator medíocre,
não resta nada de um texto, nenhum subtexto, nenhuma densidade nos silêncios. Não resta
perversidade, nada".
Que ela possa encontrar
grandes atores que saibam representar essa peça formidável
que é "O Deus da Carnificina".
A íntegra deste texto saiu no "Le Monde".
Tradução de Clara Allain.
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