São Paulo, domingo, 04 de março de 2007

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+ Teatro

A barbárie sob a superfície

Em sua nova peça, Yasmina Reza encena a violenta tensão latente nas relações de dois casais

FRANCK NOUCHI

N o início, não acontece nada, ou quase nada, nem incerteza nem tensão. Apenas, talvez, um pressentimento. Dois casais se conhecem pela razão mais banal: no dia 3 de novembro, na praça de l'Aspirant-Dunant (15º "arrondissement" de Paris), Ferdinand Reille, 11 anos, deu um soco no rosto de Bruno Houillié, também de 11 anos, após uma altercação verbal entre os dois. Yasmina Reza indica, no preâmbulo de sua nova peça, "Le Dieu du Carnage" [O Deus da Carnificina, ed. Albin Michel, 128 págs., 10, R$ 28], que na casa dos Houillé reina um ambiente "grave, cordial e tolerante".
Os dois casais se sentam face a face, tendo entre eles uma mesa baixa coberta de livros de arte. Também há dois grandes buquês de tulipas em vasos. Evidentemente estamos entre pessoas altamente civilizadas. "Não ganharemos nada se nos deixarmos levar por uma lógica passional", diz Véronique Houillé logo de início. Só que estamos no universo de Yasmina Reza. A situação inicial não passa de pretexto; o desastre é inevitável.
Uma palavra mal escolhida, o menor mal-entendido funcionam como faíscas que terminarão por provocar um verdadeiro massacre. Tudo acontece pelo deslize progressivo dos sentimentos, em que de uma conversa feita de tudo o que existe de mais policiado passa-se para uma espécie de confronto bárbaro entre quatro paredes. Fica claro rapidamente que os garotos vão servir ao mesmo tempo de pretexto e detonador. Competição, amor-próprio, ciúmes, calúnias -sua simples evocação é fonte de discórdia entre os casais mas também para cada um deles em suas interioridades.
Com uma precisão quase cirúrgica, a escritora, em "O Deus da Carnificina", consegue colocar em dia, por camadas sucessivas, os mil e um não-ditos subjacentes às relações desses dois casais. Extraordinária criadora de diálogos, Yasmina Reza reata aqui com a verve que entusiasmou os leitores e espectadores de "Arte", a peça que a levou ao sucesso mundial a partir de 1994 (em "Arte", era a masculinidade moderna que era posta a nu; aqui, é sobretudo o casal urbano superficial). Como acontece nas obras de Reza, o leitor ou espectador ri cada vez mais, à medida que os personagens vão mostrando suas garras.

Violência onipresente
Mas atenção: as aparências às vezes enganam. A obra avança mascarada. Atrás de um primeiro nível, digamos mundano, muito bem-sucedido, muito divertido, aflora uma visão apaixonante da natureza humana e do mundo contemporâneo (o que poderia haver de mais emblemático da barbárie tecnológica que nos invade do que as constantes interrupções que o celular de Alain impõe à conversa?).
Com a ajuda do rum, a violência está ali, onipresente, à flor da pele. Os personagens vivem sob pressão (social, psicológica, sexual...), com um desejo irreprimível de acabar com ela. Essa peça foi criada em Zurique, na Suíça, em dezembro de 2006. Quem a interpretará? Seis anos atrás, Yasmina Reza afirmou que jamais poderia escrever para atores medíocres. "Meus escritos", disse ela, "depositam confiança total no ator. Com um ator medíocre, não resta nada de um texto, nenhum subtexto, nenhuma densidade nos silêncios. Não resta perversidade, nada". Que ela possa encontrar grandes atores que saibam representar essa peça formidável que é "O Deus da Carnificina".


A íntegra deste texto saiu no "Le Monde". Tradução de Clara Allain.

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