São Paulo, domingo, 04 de março de 2007

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Quixote Superstar

Coletânea de ensaios lembra 400 anos do romance de Cervantes e reafirma valor crescente do espanhol

WALNICE NOGUEIRA GALVÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Para não dizer que a celebração dos 400 anos de "Dom Quixote" passou em brancas nuvens entre nós, aqui está este livro. Organizado por Maria Augusta da Costa Vieira, cervantina ilustre da USP com tese de doutoramento na especialidade, reúne ensaios de diversas matrizes e procedências.
O caso do "Quixote" é singular. Compulsado e disseminado por toda parte onde se fale espanhol, não há quem não leia ou ouça trechos, mesmo na escola; ou não saiba citar alguma coisa, em geral casos exemplares. A anedota dos moinhos de vento, tomados por gigantes, é parafraseada no mundo inteiro. O herói deu origem igualmente a um adjetivo e outros derivados que existem em qualquer língua, sempre com o mesmo sentido.
Consta que, depois da Bíblia, é o livro mais publicado do planeta. Embora amplamente conhecido, cosmopolita e internacional, o "Quixote" permanece mais estritamente hispânico, motivo de orgulho nacional, uma espécie de monumento da nacionalidade.
Basta lembrar o porte e o número das festividades desencadeadas por seu quadricentenário, inclusive, coisa inaudita, a edição milionária feita pelo governo espanhol para ser vendida a E 1 (R$ 2,50).
Nada de semelhante se passa em língua portuguesa. O melhor candidato deste lado seria "Os Lusíadas", é claro; mas, sem prejuízo da altitude estética, seu patamar de solenidade afugenta um êxito mais amplo.
Fortuna crítica
O espanhol é uma sátira, em estilo baixo, presta-se a fazer rir. Ainda mais: aceito com igual fervor por colonizador e colonizado, nem guerras de independência turvaram o fenômeno. E pesa na balança o fato de ser o marco fundador do romance burguês, o que não é pouco e atrai críticos de todos os quadrantes. Para os lusofalantes, é uma consagração que divisamos, mas para a qual não achamos paralelo em nossa língua.
Enquanto nos países hispânicos a jubilação era geral, entre nós a data quase passou despercebida. Jornais e revistas abriram páginas e números especiais, houve alguns colóquios aqui e ali, mas nada de muita repercussão. O que de mais duradouro resultou disso tudo é justamente o presente volume, e por vários motivos.
Primeiro, dá-nos uma noção da amplitude da fortuna crítica do "Quixote", que é descomunal. Segundo, percebemos o quanto essa leitura mudou, ao longo dos séculos e conforme as modas da crítica. Terceiro, admiramos a variedade e riqueza das análises, tanto quanto a origem delas: oferecem-nos, afora vários da Espanha, estudos procedentes de Portugal, Canadá, Itália, Argentina, Alemanha, Japão, EUA, Israel, México, França, Reino Unido e mesmo dois do Brasil.
Abordagens variadas
Dada a competência da organizadora e dos autores, desdobra-se ûcomo cabe a um monumentoû todo um leque de abordagens. Lá estão as que são vastíssimas, tratando do papel da memória; das etapas de elaboração desde as primeiras inspirações; do tema da leitura ou o da imaginação.
Ou as que são mais técnicas, como questões de gênero e de construção de personagens. Ou então as que se debruçam sobre recortes, devidamente aprofundados, como Sancho Pança orador ou a etiqueta que rege a atribuição do lugar de honra à ceia.
De tudo saímos mais instruídos e deleitados. Poderíamos pedir mais precisões sobre a origem dos ensaios e autores, a respeito dos quais nada é adiantado, afora a universidade a que pertencem. Trata-se de contribuições a um colóquio sobre o tema? Como a alguns poucos se agradece a permissão da republicação, deve-se deduzir que todos os demais são inéditos? Quem os traduziu, a própria organizadora ou outras pessoas?
O leitor poderia apreciar também se, como de praxe, houvesse minibiografias dos autores, para inteirar-se de outros trabalhos cervantinos que produziram, até para que possa ampliar suas próprias leituras.
Da sorte de Cervantes em nosso país dá conta o último ensaio, escrito pela organizadora. Assim ficamos sabendo que essa sorte já foi maior, tendo minguado nas últimas décadas.
E que por aqui houve eruditos cervantinos, como Olavo Bilac, Machado de Assis, Brito Broca, Josué Montello, Augusto Mayer, o que parece não ocorrer hoje em dia. Ocasiões de fecundidade da produção foram o tricentenário (1905) e o quadricentenário de nascimento (1947), pelo visto bem mais ricos que a atual celebração.
Esse definhar progressivo vai em rumo contrário a uma tendência planetária, e em especial ao que acontece nos EUA, onde a língua espanhola se expande incontrolavelmente com o aumento da população latina: multiplicam-se as rádios e os canais de TV que emitem exclusivamente em espanhol.
Pujança
Tampouco podemos ignorar a pujança dos departamentos de estudos espanhóis e hispano-americanos nas universidades do mundo todo, em detrimento dos de língua portuguesa.
Até dez ou 20 anos atrás, o português disputava ao espanhol a posição de quinta língua mais falada, mas ultimamente o espanhol disparou. E o resultado tem sido o fechamento dos departamentos de português por toda parte, o que é muito de lamentar.
Por tudo isso, tão excepcional é a edição de estudos sobre o "Quixote" em nosso país que só podemos saudar o surgimento deste livro, cuja publicação foi bancada pela Edusp e pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).


DOM QUIXOTE - A LETRA E OS CAMINHOS
Organização: Maria Augusta da Costa Vieira
Editora: Edusp (tel. 0/xx/11/3091-4008)
Quanto: R$ 50 (354 págs.)


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