São Paulo, domingo, 04 de abril de 2004

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+ brasil 504 d.C.

Depoimentos do oficial da Marinha Ivo Corseuil, do serviço de inteligência do governo Goulart, lançam luz sobre os bastidores do golpe militar

1964 visto por um araponga

José Murilo de Carvalho

Todos sabemos o que significa SNI, mas poucos se lembrarão da sigla SFICI, Serviço Federal de Informações e Contra-Informações. O SFICI foi criado em 1946 e era subordinado ao Conselho de Segurança Nacional. Em geral controlado por oficiais do Exército, em 1964 estava pela primeira vez sob a direção de um oficial da Marinha, o capitão-de-mar-e-guerra Ivo Corseuil, que fora levado para o CSN pelo Ministro da Marinha, almirante Pedro Paulo de Araújo Suzano. Suzano apoiara o golpe preventivo de 1955, liderado pelo general Lott para garantir a posse de JK na Presidência. O gesto lhe valeu a pecha de "canela-preta", com que ficou marcado na Marinha o grupo de oficiais que tinha apoiado Lott. Fora também favorável à posse de João Goulart em 1961. O legalismo e o reformismo renderam-lhe a nomeação de ministro da Marinha em 1962, posto que ocupou até 1963. Foi reformado compulsoriamente depois do Ato Institucional nº 1 e teve os direitos políticos cassados por dez anos. Ligado a Suzano, Corseuil era também um "canela-preta". No governo Goulart, os "canelas-pretas" apoiavam as reformas e se opunham aos "udenistas" da Marinha, grupo majoritário que combatia a herança de Vargas. Corseuil sobreviveu a Suzano no governo, permaneceu na chefia do SFICI até o dia 1º de abril e manteve acesso fácil ao presidente a quem apreciava. Escapou à punição, passando para a reserva como vice-almirante. Figura de segundo escalão no governo, seu nome não aparece nas crônicas do período. Tinha, no entanto, a vantagem de ocupar um posto privilegiado de observação, o serviço de inteligência, encarregado de coletar e passar ao presidente -ou ao CSN- informações sobre as muitas agitações políticas de civis e militares. Em 7 de dezembro de 1979, Corseuil me deu uma entrevista descrevendo sua experiência nos bastidores do regime. Vários pontos da conversa merecem ser divulgados. Seleciono alguns. O primeiro tem a ver com a situação do SFICI e a capacidade do governo de se manter informado. O SFICI estava sem recursos. No começo do governo Goulart, a CIA oferecera dinheiro e equipamento ao serviço, mas a oferta não foi aceita. O próprio Corseuil recusou uma dessas ofertas.

Carlos Lacerda e a CIA
Os americanos dirigiram-se então a Lacerda, que aceitou de bom grado a ajuda. A conseqüência foi que Lacerda passou a estar mais bem informado do que o governo federal. No serviço de informações, explicou Corseuil, "a base de tudo é o dinheiro [...]. O Lacerda pagava o dobro a meus informantes para serem informantes dele [...]. O serviço do Lacerda, com isso, era dez vezes melhor do que o nosso". Mesmo os informantes que atuavam dentro das Forças Armadas muitas vezes não repassavam as informações. Dinheiro brasileiro para o serviço de informação não havia: "Brasileiro é muito valente, mas não dá dinheiro, não".
Mesmo as boas informações não serviam muito. Corseuil refere casos em que assessores desaconselhavam fortemente certas nomeações para comandos militares, que eram afinal efetivadas por razões próprias do presidente. O caso mais notório foi o da indicação do general Benjamin Galhardo para o comando do 3º Exército, em 1963. Goulart preferiu a opinião do ministro da Guerra, Jair Dantas Ribeiro, contra o parecer unânime dos oficiais do CSN.
A escolha "era a pior do mundo". Se tivesse nomeado o general Ladário, "o 3º Exército não teria se revoltado". Ladário foi, afinal, nomeado a 1º de abril, tarde demais. Outros erros teriam sido a nomeação de Amaury Kruel para o comando do 2º Exército e do General Justino Alves Bastos para o 4º Exército. Nenhum dos dois seria confiável. Kruel encabeçara o Manifesto dos Coronéis, que forçara a saída de Goulart do Ministério do Trabalho em 1954.
De erros como esses, segundo Corseuil, viria a fraqueza da sustentação militar de Goulart. O ponto alto do apoio militar se teria verificado após o plebiscito, quando Suzano, na Marinha, Osvino, no Exército, e Anísio Botellho, na Aeronáutica, lhe davam tranqüilidade. Depois desmanchou tudo. Não que existisse qualquer dispositivo militar. O general Assis Brasil falava muito nesse dispositivo, mas na prática tratava-se apenas de ter comandantes leais e competentes nos lugares certos. A situação militar nos últimos dias do regime era quase patética, na descrição de Corseuil. O ministro da Guerra, Jair Dantas Ribeiro, estava hospitalizado, o chefe da Casa Militar, Assis Brasil, era omisso devido a sérios problemas domésticos, o comandante do 1º Exército, Morais Âncora, de 63 anos, "não podia nem ficar de pé". O Exército estava sem comando.
Quando, no dia 31 de março, o general Mourão Filho veio "com aqueles gatos pingados lá de Minas e não tinha nem munição", não havia quem mandasse. Cunha Melo, comandante das tropas enviadas do Rio para enfrentar os mineiros, ligou de Três Rios pedindo ordens. Responderam-lhe que o presidente não queria derramamento de sangue. Morais Âncora, então, conferenciou com Kruel em Resende e "entregou a rapadura". A falta de reação de Goulart deixou Corseuil perplexo: estavam querendo depô-lo e o presidente se preocupava com derramamento de sangue: "Então, pede demissão!". A guerra terminou à moda brasileira, como jogo de xadrez: "Um passa pra lá, outro pra cá".
A hesitação de Goulart se teria manifestado também em episódio da véspera da revolta.
Os generais lhe mandaram proposta: desse declaração contra o CGT [Comando Geral dos Trabalhadores] e a indisciplina dos marinheiros que lhe garantiriam o mandato. Alta madrugada, discutiam no quarto de Goulart Tancredo Neves, Doutel de Andrade e Assis Brasil. Tancredo recomendou a aceitação em "discurso muito bonito". Goulart tendia a aceitar quando Assis Brasil argumentou que ele devia sua posse aos sargentos e não podia abandoná-los. A proposta foi rejeitada. O depoimento do chefe do SFICI traz dados adicionais para o esclarecimento de um ponto controverso da crise de 1964: qual era a verdadeira posição de Goulart? Preparava um próprio golpe continuísta, como acusavam os adversários? Queria apenas fazer as reformas dentro da legalidade? Mas, admitindo essas duas hipóteses, como explicar o descuido com sua sustentação militar? Como querer os fins sem querer os meios? Com todos os problemas que tinha, o SFICI e os aliados alertavam o presidente sobre as conseqüências potencialmente desastrosas de suas ações e omissões em relação às Forças Armadas. Por que, então, no campo militar, parecia facilitar o trabalho dos golpistas da oposição?

"Todo mundo conspirava"
Segundo Corseuil, na época "todo mundo conspirava e todo mundo estava em cima do muro". Mas o chefe do SFICI não acreditava na conspiração de Goulart: "Ele não queria dar golpe nenhum. Ele estava louco para sair dali. Ele queria era vender o gado dele". Essa hipótese também não explica o comportamento do presidente. Se queria dar o fora, poderia ter feito compromissos ou mesmo renunciado.
Outra explicação é mais ousada. Foi sugerida por Antônio Callado [escritor] quando falou em suicídio incruento. Goulart estaria talvez pensando no exemplo de Vargas, que sacrificara a vida para entrar na história. As informações do chefe do SFICI e de outros personagens da época sugerem um comportamento político de fato quase suicida. Nesse caso, no entanto, teria sido um suicídio apenas político, faltando-lhe o ingrediente dramático da morte física, que garantiu a Vargas o ingresso na história.
O depoimento também reforça a opinião dos que julgam que o golpe de 1964 não foi uma necessidade histórica. O desenlace deveu-se a ações, omissões e erros de cálculo de agentes políticos de todos os matizes, cujo grau de lucidez parecia reduzir-se à medida que aumentava a radicalização política.
Mas a radicalização estava longe de ser generalizada. Pesquisas de opinião feitas pelo Ibope em março de 1964, às vésperas do golpe, indicam que nas oito principais capitais do país 64% dos eleitores se identificavam com os partidos políticos tradicionais, 50% com o PTB, PSD e UDN, números muito altos. O candidato favorito para a eleição presidencial de 1965 era o moderado Juscelino Kubitschek, com 37% das preferências. Pesquisa de junho de 1963 indicava que 45% da população preferia solução de centro (Juscelino e Magalhães Pinto), contra 23%, de direita (Lacerda e Ademar de Barros) e 19%, de esquerda (Brizola e Arraes). Outras soluções, além do golpe, eram possíveis.


José Murilo de Carvalho é professor titular do departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor de "Cidadania no Brasil" (Civilização Brasileira), entre outros. Escreve na seção "Brasil 504 d.C.", do Mais!.


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