São Paulo, domingo, 04 de abril de 2004

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"Uma História das Orgias", do inglês Burgo Partridge, mapeia o tema e suas transformações desde o Império Romano, passando pela Idade Média e Renascimento até quase chegar ao fascismo, no século 20

Prazer em berços esplêndidos

Valter José Maria Filho
especial para a Folha

Mostrar que alguns dos nossos hábitos mais deliciosos são quase os mesmos que divertiam os nossos antepassados é uma das mais agradáveis utilidades dos livros de história. Afinal, os gregos, os romanos, os medievais também curtiam, guardadas as devidas proporções, prazeres que corresponderiam às nossas casas de massagens, "nightclubs", clubes de suingue ou até as nossas contemporâneas e atualíssimas surubas e outras variantes de sexo alegre, criativo e recreativo. Este divertido "Uma História das Orgias" tem a intenção de levar o leitor a fazer por si mesmo essas comparações. Pois conta as transformações vividas pelas orgias no decorrer dos tempos, levando em consideração o fato de que os homens precisam do orgiástico para expulsar a energia acumulada pela abstinência sexual e pela repressão. Apesar do esforço do inglês Burgo Partridge em tentar (no curto prefácio) dar uma definição precisa de orgia, o que permanece no decorrer do livro são os sentidos de desordem, bacanal, desperdício, tumulto, farra e desregramento. Todos conhecidos pelo senso comum. Na verdade, "Uma História da Orgias" não é uma obra de história com "H" maiúsculo, no sentido sério e carrancudo que os alemães e franceses dão à atividade de historiador. Mas se trata de uma obra escrita por uma mente cultivada e inteligente, que quer divertir o grande público com amenidades inteligentes e bem elaboradas. Coisa comum na Inglaterra e nos Estados Unidos.

"Só para ver"
O leitor aqui se sente como o protagonista do filme pornô italiano "Orgias Romanas", de Mário Salieri, no qual um feliz torcedor do Napoli nos anos entre 87 e 93 (era da dupla Careca e Maradona) é transportado no tempo para a época das orgias, quando se envolve com os desregramentos sexuais que começam no Império Romano, passa pela Renascença chegando quase ao fascismo. Em um dos momentos mais engraçados do filme um nobre renascentista mostra a ele uma mulher nua para ver se o torcedor do Napoli gostaria de transar com ela. O napolitano se encolhe e diz: "Minha mãe me disse que é só para ver, não para tocar".
Esse é o princípio deste livro: fazer do leitor um observador contemplativo e viajante, mas também atento aos momentos históricos e pronto para tirar suas conclusões filosóficas e morais. A viagem começa pelos gregos, segundo o autor um povo que via a sensualidade de maneira poética e estética sem traço algum de morbidez. A coisa começa a esquentar realmente quando entram em cena os romanos, com suas loucuras e exageros. Os antigos imperadores de Roma são excelentes objetos de curiosidade erótica. Augusto, por exemplo, heterossexual convicto, satisfazia sua necessidades sexuais com as mulheres de seus ex-colaboradores, organizava enormes orgias nos seus 12 palácios e possuía um local para suas festas intitulado Gruta Azul. Onde se entregava ao voyeurismo, vendo moças e rapazes em plena atividade sexual, tendo como cenários o azul das águas e dos penhascos. Como exemplo de curiosidade motivada por esse livro, podemos lembrar que Gruta Azul é o nome de uma boate de Porto Alegre, considerada uma das dez mais em seu gênero no mundo, principalmente por tentar manter a mesma atmosfera azulada com suas bailarinas lindíssimas. Ao tratar da devassidão medieval e renascentista, o autor mantém a sua erudição e o seus comentários pertinentes. Com graça, conta histórias de estupros, flagelações e assassinatos com leveza e elegância. O mesmo acontecendo quando chega à era vitoriana, com o crescimento incrível da prostituição.

Sade e Jimmy Page
Alguns dos pontos altos do livro são as análises da vida e obra de Casanova, as reflexões a respeito da obra e vida do Marquês de Sade e os comentários sobre as estripulias de Rasputin (o louco russo que dominava sexualmente as mulheres da nobreza local). Além disso, conta pontos importantes da vida do feiticeiro Edward Alexander Crowley, o guru de Jimmy Page (guitarrista do Led Zeppelin), um libertino desenfreado que aterrorizou a Inglaterra dos anos 1920 -é dele a frase ultrajante que fez ruir a fria fleuma britânica: "Até que tenha a boca cheia de cocaína, você não sabe o que é beijar" (pág. 199).
"Uma História das Orgias" é na verdade uma história dos grandes libertinos que viveram no nosso agradável mundo. O livro não tem a mínima intenção de causar escândalo, e sim encanto. Quando o lançou, em 1958, Partridge tinha apenas 23 anos e foi o responsável pela alegria do seu editor, Anthony Blond, que viu sua empresa sair do vermelho, pois a obra entrou na lista dos mais vendidos.
O talento literário do autor talvez seja explicado por ele ser filho do casal Ralph e Frances Partridge, que fazia parte do círculo de Bloomsbury (o mesmo de Virginia Woolf), residentes na mesma casa onde moraram Lytton Strachey e Dora Carrington, primeira mulher do pai do nosso autor. Talvez Burgo Partridge tenha elaborado essa sua única obra (ele morreu aos 28 anos) pensando em continuar a linhagem de grandes prosadores que escreviam pelo prazer da escrita.
Com "Uma História das Orgias", Partridge conseguiu a proeza de escrever uma obra erudita, sem pedantismo, criar uma obra divertida, sem vulgaridades, enriquecendo as estantes das livrarias e das bibliotecas. Uma ótima e inesperada surpresa, como uma húngara recém-chegada a uma praia da Bahia, disposta a distribuir os seus riquíssimos dotes.


Valter José Maria Filho é pós-doutorando em filosofia na USP e professor de história da arte nas Faculdades Integradas de Guarulhos.


Uma História da Orgias
232 págs., R$ 39,90 de Burgo Partridge. Trad. Manoel Paulo Ferreira. Editora Planeta (al. Ministro Rocha Azevedo, 346, 8º andar, CEP 01410-000, São Paulo, SP, tel. 0/xx/ 11/3088-2588).



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